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É nas palavras de Jesus que podemos encontrar um melhor entendimento sobre a pureza de coração ao se dirigir ao povo em seu discurso no sermão da montanha.[1]
Em primeiro lugar, é importante ressaltar aqui o papel de Jesus ao considerar sua posição diante daqueles a quem se dirigia; Ele está no monte. Esta posição de Jesus sobre o monte, diante de uma multidão que o escutava, nos faz lembrar os antigos legisladores da lei, a saber, Moisés, conhecido como o grande legislador ou intérprete da lei divina, que reuniu o povo cativo em marcha para o lugar onde Deus mesmo havia indicado – a terra da promessa – embora não a tivesse conhecido.
Com toda a experiência vivida por aquele povo que O seguia – marcado pelo sofrimento e a dor – ao sublinharmos a consideração sob o contexto em que se econtrava, desfigurou-se ao longo dos séculos de história, notadamente pelo afastamento de Deus e as conseqüências desse desligamento que lhes são esperadas, a verdadeira imagem divina em seu coração já fatigado pela humilhação e o poder romano que o dominava. Desta real situação se confunde, quase como que imperceptível ante os olhos das massas, e se insurge – por assim dizer – como fato gritante, ainda que tênue, mas expressivo em seu real e profundo desejo de contemplação de Deus.
Assim nos apresenta Jesus seguido de seu discurso:
“Bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus” (Mt 5, 8).
Ora, contemplar a face de alguém que reconhecemos haver uma estreita ligação, segundo os cuidados que recebemos ao longo do caminho é reconfortante e revigorador em nosso espírito, ou seja, da alegria da alma. Podemos citar o olhar da criança que a todo o momento busca e se alegra, ao reconhecer em seus pais o porto seguro de sua vida, que ao se criar por meio da presença reconhecida, a constatação de bem e prazer, o acolhem como o gozo de seu momento único.
Por certo, este mesmo prazer é a certeza que se estabelece para o desbravamento do mundo com a confiança devida em detrimento dos perigos que sua imaginação ou intuição aponta e que tem sua razão de ser no conhecimento superficial ou concreto do meio em que vive.
Um outro aspecto de compreensão do que vem a ser a ‘contemplação de Deus’ está ligado com a verdade, distanciada, apartada da hipocrisia, ou seja, está ligada àquela atitude capaz de detectar e aceitar aquilo que ‘é’ sem o prejuízo de nossas pré-concepções ou julgamentos, atrelados ao nosso pré-conceito sobre a real definição das coisas ou acontecimentos, etc.
Em outras palavras, ter o ‘coração puro’, “Capax Dei” (capaz de Deus), é estar sempre aberto em acolher aquilo o que de fato ‘é’ – ainda que envolto em seu problema característico – sem as nuanças da instabilidade de nossas vãs certezas, ou se preferir, de tudo aquilo que nos afasta de nossas experiências reais e concretas, somadas à verdadeira intenção de coração.
“Bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus”
Não podemos fugir à realidade de nosso pré-conceito (ou julgamento) sobre nós mesmos, sobre os outros e Deus, ao se tratar da real ‘visão do objeto que se almeja tocar’. Está aqui, a meu ver, mais uma vez, quase que como uma repetição, ao podermos identificar nessa atitude tão corriqueira em nosso dia-a-dia, como sendo o fundamento que nos impede da contemplação ‘real’ e ‘pura’ que se atrela ao apego desmedido da imaginação tão presente, encarnada e tentadora de nossos ‘achismos’.
Para os pais do deserto, a primeira batalha empreendida na vida espiritual começava sempre no terreno das imaginações, pelo fato de ser aí o espaço favorável da ação demoníaca que se esforça ininterruptamente[2] em nos confundir e distorcer a real imagem das coisas, de nós mesmos, dos outros e conseqüentemente de Deus.
No decorrer da caminhada monástica que tracei, ouvi uma vez um ancião monge e sábio dizer: “Quanto mais idealizamos Deus, mas Ele se afasta de nós tão grande é a Sua realidade”.
Na esfera de nossas relações com o próximo não lhe caberia aqui a mesma sentença, visto que o homem também é um mistério? No âmbito da natureza criada, constatamos a cada dia as surpreendentes conquistas e descobertas que parecem não estar finalizadas, visto que há muito mais a ser desvendado diante do grande mistério que é o mundo, mediante, é claro, uma busca sincera e benévola.
O fato é que, encontramos ao nosso redor a forma de exercitarmos na compreensão, ou então aceitação de nossos limites na apreensão do mundo onde nós mesmos estamos inseridos para só assim ascendermos ao conhecimento de Deus.
O primeiro lugar a ser reconhecido nessa busca é o próprio interior de cada coração com tudo o que existe aí, com toda a sua verdade, onde, como o ouro em meio aos vermes ou o diamante em sua forma bruta, ou ainda como uma linda flor que se desabrocha da lama ao revelar por meio desse fenômeno a presença misteriosa de Deus, que por vezes se encontra despercebido por conta de nossa negação.
Pois desta verdade temos a narrativa dos evangelistas Lucas e Mateus seguida de resposta do próprio Jesus: “Os fariseus perguntaram um dia a Jesus quando viria o Reino de Deus. Respondeu-lhes então: O Reino de Deus não virá de um modo ostensivo. Nem se dirá: Ei-lo aqui; ou: Ei-lo ali. Pois o Reino de Deus está dentro de vós” (Mt 7, 20-21).
O Reino de Deus é o ápice por assim dizer do que vem a ser de fato o estado de Sua presença no homem; algo conquistado por meio de uma experiência íntima, e como o termo já o revela, engloba toda a vida do homem em sua particularidade.
By Maurus
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