"Certa vez, perguntaram a um ancião o caminho que levava ao abade António...
'Na caverna de um leão vive uma raposa', respondeu ele".
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Os mestres cristãos do deserto floresceram, explodiram num ápice que durou três séculos, do III ao VI depois de Cristo. Constantino tinha restituído aos cristãos, pouco tempo antes, o direito a existirem, rompendo com o Dogma de Cómodo — Cristianous me éinai, os cristãos não são —, e subtraído com uma certa suavidade a jovem religião ao terreno espantosamente húmido do martírio, aos tempos incomparáveis das catacumbas.
Isto significava, evidentemente, entregá-la a esse perigo mortal que se manteve por dezoito séculos: o pacto com o mundo. Enquanto os cristãos de Alexandria, de Constantinopla, de Roma, regressavam à normalidade dos dias e dos direitos, alguns ascetas, aterrados com esse possível pacto, fugiam correndo, para se embrenharem nos desertos da Cétia e da Nitria, da Palestina e da Síria. Embrenhavam-se num radical silêncio que só alguns dos seus ditos conseguiram romper, bólides dirigidos a um céu insondável. Em verdade, a maior parte desses ditos foi pronunciada para nada revelarem, tal como a vida desses homens quis ser igual à vida de «um homem que não existe». («Dizia-se dos Cetiotas que se algum conseguia surpreender as suas práticas, ou seja, se alcançava o conhecimento das mesmas, tal não era considerado virtude mas antes pecado»).
Os ditos e feitos dos Padres — lógoi kai erga, verba et dieta — foram recolhidos em todos os tempos com extrema piedade, porque eram quase sempre nozes duríssimas, intragáveis, por trazerem em si a totalidade da vida, impossíveis de partir com os dentes, como nas fábulas, no instante do perigo extremo, e além disso os Padres, na maior parte das vezes, recusavam-se a escrevê-los. Foram recolhidos em pergaminhos: gregos, coptas, arménios, siríacos. Nesses pergaminhos não foram perpetuados apenas os oráculos e os prodígios dos Padres e dos seus discípulos, mas também os de alguns leigos desconhecidos que secretamente praticavam os seus preceitos e, ainda que nas metrópoles que os Padres abominavam, foram algumas vezes mestres dos seus mestres.
Alguns padres foram anacoretas. Como António o Grande, pai de todos os monges, o mestre egípcio que ao longo dos séculos se venera como senhor dos animais porque, tendo regressado à inocência pré-adâmica, encantava as feras. Outros, anacoretas com momentos de vida comum, vizinhos duma igreja, dum forno, dum poço. Outros ainda, cenobitas em qualquer mosteiro ou pequena laura de pedras negras, entre penhascos e abismos. Em montanhas majestosas e esquálidas ocupavam cavernas de animais ferozes ou escavavam covis que se assemelhavam a gigantescos pombais: e em todos esses sombrios buracos abertos na pedra havia um corpo de homem. A fera e o cadáver teriam sido os seus modelos.
(«Abade Pastor, gravai no fundo do vosso coração que há um ano que estais no vosso túmulo.») Ou seja: fera e anjo, como num único arquétipo, essa criatura inconcebível, de hirsuta cabeleira e grandes asas acastanhadas, alimentada a gafanhotos e mel, João o Precursor — e no arquétipo desse arquétipo, o profeta do fogo, Elias. Dentro da caverna a fera e à entrada do sepulcro o anjo: Arsénio sentado na soleira da sua cela, com um fino pano ao peito para recolher as lágrimas que não cessavam de correr: lágrimas nas quais o eu se dissolve como o sal em águas vivas; lágrimas supremamente misteriosas e às quais a Igreja romana compôs uma missa votiva.
Mas, para além de João e Elias, parece de facto que os Padres do deserto não tiveram antecessores. Na tipologia cristã, ninguém antes deles se lhes assemelha. A sua doutrina parece sair inteira e decisiva da cabeça de António o Grande e continua inabalável, imutável, durante dezoito séculos, em todo o Oriente cristão: tantos quantos os da Igreja mística do Oriente sobre a qual foi fundada.
Do arcaboiço espiritual de António surge a maravilhosa linhagem dos Padres antigos: surge Arsénio o Romano, que foi pedagogo na corte de Bizâncio e se fez monge aos quarenta anos, «e nunca ninguém soube dizer como viveu». Surgiram Macário o Grande, Evágrio o Pôntico, Hilário, Pastor, Alónio, Sisoe, Poemen, Paísio, João o Anão, Moisés o Etíope. E, a partir destes, toda uma multidão até aos mestres do deserto de Gaza do século VI: Serido, Barsanúfio, João, Dositeu. Surgiram também os sublimes mestres sírios do século V, Isaque de Efrem. O seu magistério formou o dos seus amigos e discípulos, bispos e doutores do Oriente: Atanásio, Crisóstomo, Basílio, os dois Gregórios. Através de Cassiano o Romano, começam a despontar os fundamentos da regra patriarcal de Bento de Núrcia, e de todo o monaquismo do Ocidente. Mais tarde, um outro latino, Nicéforo o Solitário, e Gregório do Sinai definiram a doutrina e a prática da oração do nome de Jesus, a puríssima e ininterrupta oração que é o âmago da Philokalia grega e russa e do romance que edificou um povo inteiro, os Relatos dum peregrino ao seu pai espiritual. É nele que assenta ainda hoje o regimento que existe em todo o Monte Athos, com os seus anacoretas cujo número ninguém conhece, essas aves estáticas aninhadas nas grutas a prumo sobre o mar de Karoulia, e também a regra da comunidade monástica eslava, e os poucos skiti russos que restam.
No Ocidente esse magistério, depois dum eclipse apenas aparente devido ao desastre universal do Renascimento (já que entre os contemplativos da antiga cepa ele nunca foi interrompido), volta a emergir na misteriosa Contra-Reforma. Podemos voltar a senti-lo inalterado no cardeal Bona, monge cistercense, em Santo António Maria Zacarias, em Lourenço Scupoli (que numa célebre tradução russa é um texto ascético do mundo eslavo). Para não falar daquele que edificou o sistema, João da Cruz. Nessa época, da qual se ignora tanto, se não vemos renascer no Ocidente o espírito anacoreta, a xenìteia no mundo, ou migração interior, não deixou de tocar muitos homens que se aproximaram da perfeição.
Falar dos Padres do deserto, já foi dito, é tarefa quase intransponível, pois que o nosso maior desejo seria pô-los a falar. Para tal era necessário ser-se um deles, e nesse caso nada seria dito. Eles já não existem, não os temos connosco, nem sequer os meios de chegarmos a eles. O próprio espaço que os isola é de tal modo excessivo que se torna impossível atravessá-lo. Homens assim, verdadeiramente grandes, como é sempre verdadeiramente grande a Verdade, não podiam surgir a não ser na extrema solidão, e nada a não ser o «nu e ardente deserto» saberia contê-los. «O que é mais notável nos Padres do deserto», afirmou um teólogo inglês, Bryan Houghton, «é que eles se mantenham obstinadamente no deserto. Nunca conseguiremos alcançá-los. Deles próprios não revelam absolutamente nada. E nem sequer parece demasiado importante que alguém consiga interrogá-los. Porque eles sabem bem que serão eles os últimos a rir. Tinham alcançado o ponto em que o eu havia simplesmente desaparecido. Não existia mais psique à qual se pudesse atribuir uma qualquer psicologia. E apesar dos carismas divinos de que sofriam — uso a palavra sem ironia porque os carismas divinos são coisas terríveis —, que pensariam eles? Silêncio, silêncio...»
E mesmo os seus movimentos exteriores são de tal modo escassos e secretos que só podemos atribuir-lhes minudências geológicas ou então encará-los dentro dos grandes movimentos simbólicos dos heróis das Escrituras. Pisam a terra ardente das silvas (descalçarem-se e colar o rosto ao chão são dos pouquíssimos gestos em que os surpreendemos continuamente), avançam pela coluna de nuvens que lhes cega a vista e os deverá conduzir à terra do leite e do mel. Mas desta terra, no entanto, nem uma palavra, nunca. É o exílio, a travessia o que conta para eles e que eles vieram ensinar, com os seus monossílabos siderais e as suas monumentais reticências: o ser irreversivelmente estranhos nesta terra, o viver exactamente «como um homem que não existe».
De si próprios, os Padres do deserto dão uma única certeza: a sua caverna é um martyrion, eles vieram «para lutar por todos os mortos»: a morte do corpo, a morte do homem, a morte da própria mente (nous) para «se tornarem permanentemente conviventes com Deus no silêncio». O anjo sentado à entrada do sepulcro não se cansa de repetir: «Aquele que procurais — António, Arsénio, Macário — não está aqui».
É esta a hesychìa, a quietude divina ou santa impassibilidade que — como é razoável — transformava aqueles homens que não se comoviam em seres de fogo, e de tal modo que dos seus dedos erguidos saltavam chamas, e a sua palavra era «como um golpe de espada», e convinha que, durante a oração, um discípulo estivesse de vigia às suas portas para que as gentes não vissem que aquela porta era a boca de uma fornalha.
Dito isto — renunciando duma vez por todas a «saber» alguma coisa dos Padres e ainda muito menos a interpretá-los — talvez possamos, se houver coragem bastante e nos mantivermos imóveis a seus pés, contemplar — de dito em dito e sobretudo de silêncio em silêncio — essa doutrina que saiu armada do cérebro de António. Fiquemos pois aos pés dos Padres, essas «nascentes» tão celebradas em todas as épocas pelos arqueologismos revolucionários; assim talvez nós possamos encontrar aquilo que em todas as épocas esses mesmos arqueologismos se esforçaram por dispensar, tudo o que em todas as épocas conseguiram dispensar sempre um pouco mais, e de tal modo que quase nada resta num mundo que, como nunca antes, vai celebrando os fastos imaginários, românticos e sentimentais dessas origens.
Nem por sombras me ocorre alcançar os degraus fundamentais da scala coeli dos Padres: a total amputação do mundo, o extremo aperfeiçoamento dos poderes — eles mesmos simples instrumentos para a metamorfose do homem interior — através do silêncio, do jejum, do canto dos salmos, do trabalho manual: tudo o que é cânone constante, direi óbvio, de todo o monaquismo tradicional cristão. Mas com os Padres do deserto uma luz especial, que a sua taciturnidade não atenua, se derrama sobre elementos concretos para se tornarem mais tarde apenas implícitos, concretos e mais tarde praticamente perdidos, formando as pedras angulares dos seus ensinamentos, e das suas próprias vidas.
A sobrenaturalização dos cinco sentidos, por exemplo: ou para melhor dizer, a existência dos «sentidos sobrenaturais» que a hesychìa designou a vida, através dos quais um corpo ainda vivo pode tornar-se em algo semelhante a um corpo glorioso, ou a água na qual alguns padres se limitaram a lavar simplesmente as mãos, para exorcizar um noviço tentado pelo espírito impuro. Mãos que, uma vez erguidas, soltam chamas, e que é preciso baixar de imediato em oração para não serem arrastadas rapidamente pelo êxtase. Corpos sobre os quais uma águia de fogo cai a prumo durante o Ofício Divino, ou que um lençol de fogo cobre no acto de vestir. Resplandecente, ameaçadora autonomia de uma bagatela, de um cíngulo, de um saltério, impregnando a vida de um santo ao questionar o inimigo como ferro incandescente, obrigando-o a soltar altos gritos.
O próprio lugar onde tudo se joga — a mente — tem uma vida própria, absoluta, segundo Isaque, um corpo próprio, o qual consome, até ao fundo, actos e acções, nem mais nem menos que o outro corpo, até o outro corpo ficar deserto: um sepulcro dominado pelos demónios. («E aquele que tiver olhado uma mulher com desejo de fornicação...».)
É António o Grande quem define duma vez por todas essa relação feroz e funesta entre o corpo e a mente humana, numa dessas sentenças que se soltam dele como o fulgor do flanco escarpado de um Sinai. «Os demónios não são corpos visíveis, mas nós tornamo-nos os corpos deles quando aceitamos os seus pensamentos tenebrosos. Porque, ao acolhermos tais pensamentos, acolhemos os próprios demónios e concedemos-lhes a sua expressão corpórea». Sob esta luz, adquire novo e arrepiante sentido a imagem do demónio ou do possesso que ronda «os desertos, por entre os túmulos». (Gregório Magno atribui a este ser errante na mente semelhanças ferozes: «lúpus qui sine cessatione quotidie non corpora sed mentes dilaniaty malignus videlicet spiritus»).
Na mente pura e unida Deus pode morar. Da mente dilacerada, múltipla, Deus afasta-se. É a única razão para a solicitude de não pecar, o único e verdadeiro móbil da infatigável purificação.
As técnicas desta purificação são infinitamente variadas e infinitamente contraditórias. Cada preceito vê-se reflectido constantemente no seu contrário, num jogo de espelhos opostos, num vertiginoso explodir de antinomias que torna impossível neste caso, e mais que nunca neste caso, qualquer sentimento de posse ou de sucesso. Mas no centro tudo se rege sempre — como atitude para com o mundo exterior — em função de uma preliminar e radical subversão de todas as leis da psicologia natural. Ou seja, no fundo, um denominador comum a todos os atletismos espirituais, que podemos encontrar em qualquer ponto do tempo ou do espaço. A luta contra as potências tenebrosas que apertam o assédio à mente é vencida pela subversão de todos os meios naturais de luta, segundo uma espécie de aikido espiritual no qual as energias agressivas do inimigo são por assim dizer utilizadas em vez de serem rejeitadas no seu ímpeto, de forma a transformá-las no seu oposto. E a santa rejeição do Evangelho e dos pequenos evangelhos que são as fábulas. «A quem te pede a túnica, darás também o manto; e a quem te atormenta no espaço duma milha, tu deves ir com ele pelo menos duas». Se um homem ou um demónio te acusa, deves duplicar essa acusação; se um homem ou um demónio te ameaça, deves mostrar-te ávido de uma ameaça ainda mais violenta. «Ancião, que farás tu, quando te restam ainda cinquenta anos para viver (e para sofrer)? Haveis-me afligido bastante pois eu estava preparado para viver duzentos anos». E ao maligno, quando se manifesta: «Vem, que isso me dá prazer!». E passados doze anos, ao vê-lo afastar-se vencido: «Por que foges? Não te vás ainda embora!»
A técnica do koan budista não é de maneira nenhuma desconhecida destes terríficos e suavíssimos zen cristãos. «É bom procurar os anciãos ou é melhor permanecer na nossa cela? Uma regra dos padres antigos era a de visitar os anciãos, que por sua vez ordenavam precisamente que cada um permanecesse na sua cela».
«Com o aplauso de uma só mão», os mistérios inextrincavelmente entrelaçados do destino e da providência divina soam como melodiosos contrastes nos ditos e feitos dos Padres do deserto. O que é bênção para Sisoe, para Hilário poderá ser interdição e perigo; se o escriba não é suficientemente veloz para gravar exactamente as palavras de Barsanúfio, isto significa que é tal como ele grava que Deus quer que sejam gravadas e assim actuará o que ficou gravado; e se ao ancião enfermo não fosse destinado o óleo pestilento, o discípulo distraído acabaria por deitar mel na sua sopa.
«Providência», ensina António, «é o Verbo de Deus que se cumpre a si próprio e dá forma à substância que constitui este mundo». Neste divino tapete é lícito ao homem tecer-se a si próprio com o fio mágico daquele amor que tem o nome estranho de Comunhão dos Santos. Todos os portentos, todas as conversões, todas as graças narradas pelas histórias dos Padres do deserto são concedidas a qualquer um «pela dor que é assumida» por outro, pela privação e humilhação que um outro por sua vez aceitou. Do mesmo modo, o abade Bane, abandonadas todas as obras de caridade corporal pela pura oração, poderá conseguir «que a cevada cresça em abundância no mundo inteiro, e que todos os pecados de uma geração sejam remíveis». Qualquer outra forma de caridade, em relação a Deus ou em relação ao próximo, surge aos olhos dos Padres como algo risível: como sentimentalismo ou cumplicidade.
Em torno destes grandes leões jacentes do espírito, o mundo das formas, tal como o da palavra, é praticamente abolido e torna-se mais terrivelmente violento. Os seus objectos heráldicos — o saltério, o cinto de couro, o manto de pele, o cesto de vime, a tigela, os pequenos pães, o sal — juntam-se numa solidão quase ameaçadora, como ossos de dinossauro, na luz secante, na sombra total. As sentenças são dardos com pontas de ferro que zunem longamente nos ares antes de atingirem verticalmente o coração do discípulo. Deus precipita-se a prumo nessas celas, nesses corpos, com um único e tremendo bater de asas. E nesses corpos, radicados no céu, existe uma força que espanta: visionários e taumaturgos sujeitos à tentação até chegarem aos cem anos, frágeis rapazes que escavam nas montanhas.
A narração nua e sintética, com regras sempre iguais como os poemas de Homero, duma psicologia ousada e duma frugalidade verbal que fazia com que a narrativa profana soasse como um vozear vazio de cães que impedia Arsénio de meditar, é sempre o maravilhoso retrato do homem que não parece conseguir já dominar-se, de tal modo ele permanece para lá de qualquer enigma: o homem espiritual. O abade Moisés o Etíope que tinha sido escravo e ladrão, Paulo o Ilustre, os dois pequenos mártires irmãos, o belíssimo oficial transformado «num antigo leproso». Só na grande prosa russa, que começa com os Relatos de um peregrino, e de forma alguma esgotada, se transmitiu, através de Bizâncio e da literatura eclesiástica oriental, algo deste estilo.
E no entanto, naquela história do Padre do deserto que Tolstoi pretende ressuscitar, Padre Sérgio, não existe nem a fera nem o anjo, apenas o herói, um patético príncipe russo. «O homem que não existe», todos os Padres do deserto são todos os Padres e nenhum Padre; e precisamente por isto, e ainda uma vez mais, é um só, irrepetível, inconcebível Padre. Do tecido de centenas de ditos e feitos que lhe dizem respeito, poder-se-á reconstruir, refazer um Arsénio? Arsénio oculto na igreja por detrás duma coluna, «belo, a barba branca, corpo magro e bem acabado, de sobrolho caído pela abundância das lágrimas»; Arsénio, ex-preceptor imperial perenemente imerso no fedor das folhas apodrecidas «em troca dos perfumes e óleos olorosos usados pelos outros»; Arsénio que «tinha decidido não escrever nem receber nunca uma carta, e em geral não dizer praticamente mais nada»; Arsénio «todo em fogo» na oração, e de tal modo atormentado na sua cela por «grande aflição e tristeza», que os discípulos se afastavam aterrados; Arsénio que suplica para não ir quando se ouve dizer que ele está em certo lugar; Arsénio que, regressado aos discípulos por ele abandonados durante meses, lhes pergunta porque não partiram a procurá-lo, acrescentando, banhado em lágrimas: «A pomba não encontrou onde pousar e voltou ao ninho...»; Arsénio, moribundo, confessando o seu terror e que ameaça falar, frente ao tribunal de Cristo, dos que tentam fazer relíquias do seu corpo. «Mas como, Abade? Nós não sabemos preparar os mortos.» «Não sereis capazes de atar-me a uma corda pelo pé e arrastar-me até ao cimo da montanha?».
Qual o poeta suficientemente forte para conseguir esboçar um tal perfil? Suficientemente puro para inventar essas cenas mínimas que literalmente despedaçam os corações, como o choro repentino do ancião doente a quem se estende a taça de vinho: «Não pensava voltar a saborear vinho, antes de morrer...».
Essa escola de aldeões celestes, os pintores da Rússia do Norte, viu em visões e projectou nas tábuas dum ícone a divina infância dos Padres do deserto: infância que nos trespassa e aterra como a própria Sapiência, como a inexplicável majestade da inocência animal. O velho anacoreta que «pastava com os búfalos», numa das mais breves e grandes prosas que a mão esboçou, acaba por ser encontrado uma manhã, com os búfalos, nas redes. «Ao vê-lo, os caçadores foram tomados de terror». E libertaram o velho que, sem preferir palavra, «fugiu correndo atrás dos búfalos».
Também nós, ditas e pensadas sobre eles todas as coisas possíveis, somos obrigados a deixar fugir — tocando com a fronte, em silêncio, nas suas santas pegadas — um desses homens, se acaso a graça alguma vez o levou a atravessar, por um escasso segundo, o nosso deserto.
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Por: Cristina Campo
In Ditos e feitos dos Padres do Deserto, ed. Assírio & Alvim
Imagens: Vida e tentações do Abade António
curti os ditos e forma de vida dos padres do deserto
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