A Oração de Jesus*
***
1. O
CONTEXTO ECLESIAL TEOLÓGICO/SACRAMENTAL:
Muito importante para
compreender esta oração é situá-la em seu contexto teológico e eclesial: o
hesicasta não está além da Igreja, ele se centra na Igreja, se faz
integralmente um homem da Igreja, capaz de “fazer eucaristia em todas as
coisas” como pedia o Apóstolo (I Tes 5,18). Que o hesicasmo constitui a
contrapartida cristã do yoga que re-situa, numa atitude propriamente de
reencontro pessoal e de graça, uma exploração da interioridade que também as
espiritualidades asiáticas praticam, é mais que provável. E isto se deve à
estrutura mesma do homem, criado à imagem de Deus.
Voltaremos a falar sobre isto.
Porém, posto que só Cristo pode recapitular todas as coisas e colocar tudo em
seu verdadeiro lugar, o hesicasmo aparece como fundamentalmente crístico, como
uma ascese cujo fim é a tomada de consciência atuante da Igreja, Corpo de
Cristo, Templo do Espírito Santo e Casa do Pai...
A)
É NECESSÁRIO, EM PRIMEIRO LUGAR, RECORDAR ALGUMAS APROXIMAÇÕES TEOLÓGICAS:
Quando, no Ocidente, pensamos
na noção de natureza, o fazemos através de uma sensibilidade filosófica
modelada pelo tomismo tardio, logo, pelo dualismo cartesiano, finalmente, pelas
ciências contemporâneas que reabilitam - contra as ciências humanas - esse "paradigma
perdido" a partir dos dados da biologia, da ecologia e da etología. Assim,
cada vez, temos a impressão de que a graça vem juntar-se à natureza para
contrariá-la ou aperfeiçoá-la... No Oriente cristão, me parece, a graça é
sentida como presente em tudo o que existe. A verdadeira natureza dos seres e
das coisas é justamente essa transparência à graça, esse dinamismo de união com
as energias divinas. Pois, a graça é incriada, é Deus mesmo que se faz
participável voluntariamente, permanecendo, ao mesmo tempo, o Totalmente Outro,
o Inacessível.
Seguir a natureza, nesta
perspectiva, é abrir-se à graça e unir-se a Deus: o homem não é verdadeiramente
homem senão em Deus, não se pode falar do homem em seu próprio nível e, como
dizia Berdiaev, empregando símbolos apocalípticos, não há, em geral, outra
eleição que a "divino-humanidade" ou a
"bestial-humanidade". O mundo caído, ainda que siga sendo criação de
Deus, conhece uma modalidade noturna, ou, se se quer, demasiado clara,
luciferina, no sentido do "palácio de cristal" de Dostoievsky.
Certamente é mantido no ser pela Sabedoria divina, e a reflexão científica mais
recente mostra até que ponto a ordem cósmica se recompõe sem cessar sobre a
desordem, sobre o caos. Não obstante, esse mundo de opacidade, de crueldade e
de morte, é parcialmente contra-natura: a verdadeira natureza, a descobrimos no
corpo "pneumatizado" do Ressuscitado, do qual participamos na
Eucaristia...
O homem foi criado à imagem de
Deus, chamado a se transformar, na graça, imagem e semelhança, no sentido de
uma participação. A imagem designa, em primeiro lugar, o homem enquanto
vocacionado a uma existência pessoal em comunhão, a maneira da Uni-trindade e
por transparência das energias trinitárias. Porém, designa também essa natureza
profunda, inseparável do cosmo, não fruto, senão motor secreto do devir
cósmico, e esta natureza é a aspiração ao infinito, a esperança da deificação,
a imensa celebração da que a Índia diz com profundidade que dorme na pedra,
sonha na planta, desperta no animal, faz-se, ou, melhor dizendo, pode se fazer consciente
no homem. Todo o problema do homem radica em expressar justamente esse
movimento para o infinito, unir o dinamismo interior do Sopro à revelação do
Logos, de outro modo, esse impulso suscita as "paixões" e as
idolatrias.
Se se tem presente o significado
da noção de natureza, compreende-se que o ser humano, em sua totalidade, e até
em sua estrutura e ritmos corporais, está constituído para chegar a ser templo
do Espírito (a expressão é paulina, como se sabe). Temos feito do cristianismo
um assunto da alma, um assunto psicológico (e finalmente, uma ideologia...).
Porém, na Tradição da Igreja indivisa se encontra a idéia muito forte de que o
homem é criado para estar unido a Deus em todo o seu ser, espírito, alma e
corpo; não se considerando aqui o espírito como uma faculdade particular, mas
como o centro donde todas as faculdades se unem, donde o homem, todo inteiro,
se unifica e se supera. Em suma, a inscrição em toda a natureza do homem, de
sua vocação em pessoa. Um ocidental, marcado por uma espécie de platonismo
inconsciente, tem tendência a aproximar o Espírito ao espírito, depreciando o
corpo. Na realidade, o Deus vivente transcende também radicalmente, tanto o
inteligível como o sensível, e quando se dá, transfigura tanto um como outro. A
antropologia do hesicasmo é bíblica, isto é, unitária. Acentua os dois ritmos
fundamentais de nossa existência psicossomática, o da respiração e o do
coração. O ritmo respiratório é o único que podemos utilizar voluntariamente,
não para dominá-lo senão para oferecê-lo; ele determina nossa temporalidade
vivida, a acelera ou a acalma, fecha-se sobre si mesma ou a abre sobre a
Presença.
O ritmo do coração ordena o espaço-tempo ao redor de um centro do que
todas as tradições espirituais sabem que é abismal, que pode abrir-se sobre a
transcendência; é a "caverna do coração" das tradições arcaicas e da
Índia... Esses dois ritmos nos tem sido dados pelo Criador para permitir à vida
divina apoderar-se da profundeza de nosso ser e envolvê-lo, encher de luz toda
nossa existência. Poderia-se quase dizer, não somente nossa existência corporal
mas, a partir de nossa existência corporal, pois é no Corpo de Cristo que somos
enxertados pelo batismo; é pelo sangue (con-sangüíneos) e pelo corpo
(con-corporais) que somos unidos a Cristo: certamente, o Corpo de Cristo
designa sua humanidade inteira, porém a língua não se equivoca, é o corpo o que
constitui a raiz e a expressão ultima da encarnação. É necessário tomar a sério
a exortação: "Não sabeis que vosso corpo é o templo do Espírito Santo que
habita em vós? Glorificai a Deus em vosso corpo" (1Cor 6,19-20).
Uma certa poesia nos guia aqui,
não para o imaginário, senão para a profundidade, para o simbolismo verdadeiro
que se inscreve na natureza das coisas que o Logos ordena e que o Pneuma
vivifica.
“O
Senhor Deus formou o homem do pó da terra, soprou em suas narinas um sopro de
vida e o homem se converteu em um ser vivente” (Gn 2,7).
Assim se precisa uma
correspondência, uma analogia-participação entre o Espírito, enquanto sopro vivificante
de Deus, e a respiração enquanto sopro vital do homem. O homem é chamado a
mesclar seu sopro ao Sopro divino, a "respirar o Espírto Santo", como
escreveu Gregório o Sinaíta. É o que ele alcança se consegue "aderir"
à sua respiração o Nome de Jesus, pois o Espírito, tanto em Deus como no homem,
é o "anunciador do Verbo".Existe igualmente uma analogia semelhante
entre o coração, como centr de integração do homem, e Cristo, "sol de
justiça", coração da Igreja e, por seu intermédio, do Universo, posto que
a Igreja não é outra coisa que o Universo em vias de transfiguração ao redor de
seu coração. Este tema de Cristo-coração, coração da Igreja e de cada um de
seus membros, é fundamental para um espiritual e liturgista leigo do final da
Idade Media, Nicolás Cabasillas, que escrevia para os leigos e dava à tradição
hesicasta uma tonalidade diretamente sacramental.
Com efeito, o tema do coração
está ligado ao do sangue. Quando o homem arcaico e, por outro lado, o homem
bíblico, medita sobre o sangue, o vê líquido como a água mas, vermelho e quente
como o fogo. O sangue é, de algum modo, a água "pneumatizada",
portadora do mistério da vida e que só pertence a Deus. As águas simbolizam a
vibração original do criado sob o sopro que suscita a vida. Na origem, o
Espírito repousa sobre as águas, as incuba, torna-as dóceis às exortações do
verbo. E, certamente, em nós e ao redor de nós, o pecado endurece o ser criado,
o faz insensível ao Espírito. Só o sangue que brota do lado, do coração do
crucificado pode sacramentar de novo a terra. Só o sangue eucarístico pode
ascender novamente o fogo do Espírito em nosso sangue, em nosso coração, desde
que a existência em nós perca sua dureza, que o coração de pedra se dissolva
nas águas novamente originais, matriciais, do batismo e das lágrimas.
Através destes símbolos que se
correspondem, se pode apreciar como se entrelaçam o sopro humano e o sopro
divino, a graça batismal, o sangue e o coração. Tudo isto conduz à idéia de uma
inteligência que não é somente cerebral, inteligência da cabeça e da
racionalidade caída - que opõe ou confunde - e também à idéia de um
"sentir", de uma sensação que não é só do coração orgânico ou das
entranhas. Por conseguinte, a idéia de uma inteligência do coração espiritual
(que não coincide totalmente com o coração físico, mas se encontra um pouco
mais além) e de uma sensação do coração espiritual. Como se o coração tivesse
se unido, metamorfoseado no crisol da graça, a cabeça e as entranhas, por um
conhecimento de fé e de amor, por uma "sensação de Deus" donde o
homem íntegro se sobrepassa, se equilibra e se abrasa.
A Bíblia fala sem cessar desse
"coração-espírito", desse coração inteligente. O Evangelho diz:
"Amarás a Deus com todo o teu coração"; numa redação mais tardia,
adaptada à mentalidade helênica, teve tornar mais preciso: "com todo o
todo o teu coração e com toda a tua inteligência". Porém, biblicamente
falando, "com todo o teu coração" é suficiente, pois, dizer "com
todo teu coração" é dizer "com toda a inteligência".
O fundamento destas analogias é
a criação do homem à imagem de Deus, o que explica que estejam presentes, ao
menos de forma parcial, na maioria das tradições espirituais da humanidade.
Porém, a Criação não é realmente restaurada, ou melhor, realmente instaurada,
senão em Cristo, e é por isto que todas estas analogias encontram n’Ele sua
origem e seu cumprimento. É Ele quem fez da humanidade, o Tempo do Espírito,
seu sopro é o "principio de vida"; sua carne e seu sangue, assumindo
no pão e no vinho todo o Cosmos e toda a História Humana, são o único alimento
de eternidade.
B)
A ORAÇÃO DE JESUS, POR OUTRO LADO, ESTÁ LIGADA AO MISTÉRIO DO NOME:
O tema do nome se re-encontra
por todas as partes na história das religiões, como na celebração poética ou
ritual, das amizades ou dos amores humanos. O nome tem sido sempre sentido como
a expressão da Presença. Nas religiões arcaicas, das que a magia está muitas
vezes próxima, conhecer o nome de Deus é dominar seu poder (porém, Deus não é
mais que a aparência de uma divindade impessoal). Na Bíblia a mudança é
surpreendente: não se trata de dominar o poder de Deus, o Deus vivente toma uma
distancia fulminante, até mesmo, inacessível. A invocação do Nome se faz
excepcional e terrorífica. O tetragrama era pronunciado só uma vez por ano, no
dia de Yom Kippour, quando o grande sacerdote entrava no "santo dos
santos". E, inclusive, esta nomeação se perdeu, foi (voluntariamente?)
esquecida. Diz-se ADONAI, o Senhor; ou Elohim, o plural que designa o
"salto fora de si" do inacessível. Nas religiões da transcendência
pura, Judaísmo e Islamismo, não se pretende conhecer o Nome; sabe-se somente
que Deus estabeleceu soberanamente certos tipos de relações com o homem e que,
dada uma delas, pode ser evocado por um nome relativo por definição (não há então
o Nome, senão os nomes: no Islã somam 99).
Jesus nos revela o Nome próprio
de Deus e é um Nome expropriado. Deus sai de sua transcendência inacessível e
se revela a nós sobre a Cruz. É nesta "kenosis" inimaginável, nesta
expropriação total, que nos revela seu próprio nome. Jesus, nome não muito
comum no Antigo Israel, significa "Deus Salva", "Deus
Liberta". Porém, é só depois do Getsêmani e do Gólgota, depois da descida
de Cristo à morte e ao inferno que sabemos que somos salvos e libertos.
O paradoxo do Inacessível e do
Crucificado, esta grande antinomia, nos permite balbuciar, muito além de todo
sentimentalismo, a equação de João: "Deus é amor". Nós não invocamos
o Nome como os povos antigos que queriam dominar um poder: oferecemos a uma presença
infinitamente participável, porém simultaneamente inacessível.
Já não invocamos o Nome no
temor e no tremor, como o fazem o Judaísmo e o Islam, para os quais trata-se
sobretudo de um desses nomes que constituem algo assim como o
"reverso" misterioso do Transcendente. Deus para nós, voltou ao
coração de sua Criação pelo Sim de uma mulher e, consumindo o fogo, vem a nós,
"doce e humilde de coração" na presença de Jesus, no sopro ligeiro do
Espírito, no balbuciar infantil, tão familiar e confiável: "Abba" -
Pai; no Pão e no Vinho compartilhados à Eucaristia.
É por isso que, contrariamente
ao que se pensa, muitas vezes, o Nome próprio de Deus, o Nome expropriado do
Amor, não me parece que se limite somente à invocação de Jesus. Ele se desdobra
na fórmula íntegra: "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus", tratando-se
de uma fórmula trinitária.
A "Oração de Jesus",
tal como se estereotipou nos séculos XIII e XIV, "Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tem piedade de mim", lembra o chamado do publicano e do
cego do Evangelho. Porém, trata-se de uma invocação trinitária. Invocamos a
Jesus, o chamamos Cristo e Senhor, por conseguinte, confessamos sua divindade.
Entretanto, "ninguém pode dizer que Jesus é Senhor senão no Espírito
Santo" (I Cor 12,3). Dizer que Ele é Cristo, é recordar que o Espírito
repousa sobre Ele, n'Ele, pois o Espírito é, desde a eternidade, a "unção
do Filho", como assinalava São Gregório de Nissa. Invoquemos então, no
Espírito, e designemos ao Espírito mesmo designado a unção que faz de Jesus o
Cristo. Finalmente, digamos d'Este que é "Filho de Deus". E Deus, nesta
fórmula, como em todo o cristianismo antigo, é o Pai, "Fonte" da
divindade e "princípio" do Filho e do Espírito. Dizer "Jesus
Cristo Filho de Deus", é entrar no mistério da "patri-filiação",
é nomear o Pai.
A "Oração de Jesus" –
e este é o ultimo elemento de seu contexto, do que me parece essencial falar –
se situa numa perspectiva sacramental. Tem por finalidade uma tomada de
consciência da graça batismal; é um reencontro pessoal com Cristo que é, ao
mesmo tempo, uma "Vida em Cristo, uma "respiração do Espírito" (posto que o corpo sacramental de Cristo é um
Corpo "pneumático", um lugar pentecostal), uma atualização da
energia trinitária que, para um cristão, não é jamais impessoal, mas que se
realiza no Espírito, por Cristo ao Pai.
O Batismo, e, por conseguinte,
o Crisma, que no Oriente cristão é inseparável, acentua o aspecto carismático;
o batismo é a grande iniciação cristã, submersão nas águas da morte, descida ao
inferno com Cristo e subida com Ele e n'Ele; ressurreição em Cristo,
possibilidade de metamorfosear a angústia da morte em júbilo no Espírito. De
modo que, o batizado leva dali em diante em seu inconsciente, não só os traços
de seu destino individual ou coletivo, mas o próprio Deus (o que, a sua maneira, descobrem os "psicanalistas da existência").
Dali em diante, uma certa
exterioridade ou impessoalidade de Deus é superada, exterioridade das religiões
da transcendência fechada, onde a fé permanece sendo de ordem ética;
impessoalidade dos orientes distantes, onde a imersão no divino dissolve o
homem.
Mediante o Batismo, o Deus
Vivente, o Inacessível, se torna plenamente participável na
"profundidade" do coração.
São João Crisóstomo afirma que
um adulto, recebendo o Batismo, percebe fugazmente uma real iluminação; porém,
que esta se oculta em seguida no inconsciente. É necessário então trabalhar, e
este é todo o sentido da ascese, para tornar-nos conscientes desta Presença que
ocupa o fundo de nosso ser. Além disso, existe a santidade em nossa própria
existência corporal, enxertada pelo batismo no Corpo do "Único
Santo"; existe a santidade em nosso corpo "com-corporal" ao seu,
em nosso sangue penetrado pela incandescência eucarística. É nossa alma ou mais
precisamente, nossa consciência a que se adultera e se prostitui; é ela que
precisa voltar a estar atenta ao mistério presente no "coração".
A "Oração de Jesus"
tem por finalidade "circunscrever o incorporal no corporal",
reconstruir a unidade estática do "coração consciente". Tomar
consciência da graça do Batismo não se separa, por conseguinte, da tomada de
consciência da plenitude eucarística. Viver em Cristo é tornar-se um homem
eucarístico, é despertar-se para a grande alegria da Eucaristia que é também
uma alegria pentecostal, uma vez cada vez que, cada vez que celebramos a
Eucaristia entramos num Pentecostes que não terminará jamais, que antecipa a
Parusia, e que sobrevirá com toda sua força no momento da Parusia: "Vimos
a verdadeira Luz, recebemos o Espírito celeste", cantam os que comungaram.
A finalidade da "Oração de Jesus" é nos ajudar a estabilizar, a
elucidar, a interiorizar esta visão da verdadeira Luz, esta recepção do
Espírito. A invocação do Nome de Jesus deve chegar a ser uma
"epíclesis" cada vez mais permanente.
O "coração
consciente" é, deste modo, um coração eclesial. É, por sua vez, a
unificação do homem e a tomada de consciência da consubstancialidade, em
Cristo, de todos os homens.
Por isso, os carismas que
recebem, as vezes, os espirituais - de cura, de profecia, de clarividência, de
discernimento dos espíritos, de paternidade espiritual - são ordenados para a
"edificação" da Igreja. Ainda que permaneça só e anônimo até o fim de
sua vida, o espiritual, só pela sua simples presença, é uma fonte de bênçãos
para a Igreja, para a humanidade e para o Universo. Tudo é envolvido em sua
oração. É o sal da terra e a luz do mundo, ele que, com o apóstolo, não busca
mais que ser a escória deste mundo.
A esta tomada de consciência da
graça sacramental se une, de modo inseparável, uma leitura adoradora e, como
sacramental ela também, da Palavra de Deus. É o que o monaquismo ocidental
denomina a "Lectio Divina" - uma incorporação quase eucarística do
sentido espiritual. Uma leitura semelhante permite, logo, levar em si uma frase
ou uma palavra, como um gérmen de vida, como um perfume que enobrece a alma
durante horas.
Deixa-se levar pela leitura dos
Salmos, porém se repentinamente uma frase, uma expressão, toca o coração, é
necessário guardar em si, preciosamente, este toque de transcendência:
"Teu amor me feriu, marcho cantado-te", dizia São João Clímaco.
Entre as histórias do deserto,
se encontra aquela do homem que encontrou um abba (pai espiritual) e lhe
perguntou como se devia orar. "É necessário recitar os salmos",
respondeu o monge. Como não sabia nenhum, o monge lhe ensinou o primeiro
versículo do Primeiro Salmo: "Feliz o homem que não marcha segundo o
conselho dos ímpios". E acrescentou: "Vê, medita estas palavras,
volte logo te ensinarei a continuação". O homem partiu e o monge não o
voltou a ver. Durante muitos anos sua meditação se alimentou daquelas palavras
e por causa delas se converteu em um santo...
A Bíblia e a Filocalia são
inseparáveis. O autor dos Relatos de um Peregrino Russo, conta que só levava
estes dois livros em seu alforje. "O Evangelho é como a oração de Jesus",
escreveu, "pois, o Nome divino encerra em si todas as verdades
evangélicas". Quando comecei a compreender melhor a Bíblia, graças a
Filocalia, encontrei cada vez menos passagens obscuras. Os Padres têm razão em
dizer que a Filocalia é a chave que descobre os mistérios encerrados na
Escritura. É a hermenêutica da oração a que mais temos necessidade nos dias de
hoje "Comecei a compreender o sentido oculto da Palavra de Deus",
acrescenta o Peregrino, "Descobri o que significam expressões como:
"o homem interior do coração", "a oração verdadeira",
"a adoração em espírito", "o Reino em nosso interior" e
"a intercessão do Espírito". Compreendi o sentido destas palavras:
"Vós estais em mim", "estar revestidos de Cristo" e muitas
outras.
Compreende-se que o Oriente
cristão chamou "graphai", escrituras, indistintamente, à Bíblia, aos
seus comentários litúrgicos e aos seus comentários místicos; e que também
certos espirituais da Tradição pudessem afirmar que a destruição material da
Bíblia não teria para eles nenhuma importância, não só porque já sabiam de
memória, mas porque já havia penetrado em seu coração. No limite, o coração
virgem do santo "iletrado" (agrammatos) se converte em página branca
na qual Deus escreve diretamente, com caracteres de fogo o seu Verbo.
______________________________________________
*Conferência realizada por
Olivier Clèment, teólogo ortodoxo, aos monges da Abadia de Tamie
(Saboya) em 29 de maio de 1970. Tradução de Pe. Paulo Augusto
Tamanini, extraída do site Ecclesia.
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