A
Palavra na história pessoal vivida. Momentos de abertura e fechamento à voz
interior: Um relato concreto*:
***
Com que coragem, eu, um jovem
monge, desprovido daquela autoridade credenciada pela experiência de fé de anos
e anos construída no natural e sempre novo cotidiano monástico, aventura-se a
tornar conhecida minha intimidade com Deus por meio de Sua Palavra?
Respondo que, a única
autoridade que se possa invocar para falar a outrem é o da ‘busca’ e o da
‘verdade’. Pela primeira, ainda que não seja longa, tem sua real experiência de
vida. Pela segunda, é permitido a tal jovem monge dar testemunho de sua
história pessoal de fé e meditação na perene atualidade da Palavra de Deus: A
Sagradas Escrituras. Por ambas, se realiza aquela busca mútua de Deus para com
sua criatura predileta que é o homem, e do mesmo para Deus que é a Verdade.
É, pois, a partir dessa mútua
procura entre Deus e o homem, a qual é sempre precedida por Ele – como nos
atesta a Sagradas Escrituras e seguida fielmente pelo Magistério ao longo dos
séculos – é que se inicia esta minha trajetória de fé, de busca, o que não é
senão minha resposta à Palavra que se auto-revela em minha particularidade, e,
se autorrevelando, me torna claro os Seus desígnios, me concedendo a partir de
minha abertura à graça de responder a Sua Vontade.
Neste itinerário, muitas foram
as pessoas por meio das quais, Deus, dando-Se a conhecer a mim desde o meu
primeiro encontro com a fé, ainda que inconscientemente no momento do batismo,
até às pessoas atuais com quem me deparo no desenrolar de minha peregrinação de fé, recordo
nitidamente a participação de meus pais, minhas catequistas, meu pároco e
irmãos de caminhada eclesial; somando-se a estes me vem a lembrança os momentos
de retiros, bem como as orações e meditações individuais, onde pude ir
percebendo como Deus, qual tecelão, ia tecendo esta minha primeira etapa no
processo de amadurecimento espiritual, e como fui aderindo ao reconhecer a Sua
presença, Sua revelação, enfim, o Seu projeto, ao qual nem sempre reagi de
maneira positiva e receptiva. Porém, os não raros momentos de medos, incertezas,
infidelidades e negação de mim mesmo, não foram obstáculos à eficácia da
Palavra viva e atuante de Deus em mim. Ao contrário, essas sombras juntando-se
às luzes serviram antes de tudo para aproximar-me mais radicalmente d’Ele, que,
ao revelar-se a mim em Sua Palavra encarnada, Jesus Cristo, deu-me forças e
coragem para perceber e aceitar meus limites e, sobretudo, dizer sim à nova
etapa do meu amadurecimento na fé a qual Deus um dia me chamaria: o ingresso na
vida monástica.
Militando, pois, sob um abade e sob uma regra,
justamente neste período de formação inicial da vida monástica, chamado mais
propriamente de postulantado e noviciado, que movido pelo trasbordante ardor presente
nos iniciantes à vida religiosa, a qual em um mosteiro é essencialmente marcada
pelo silêncio, ofício divino, trabalhos e não em último lugar pela lectio
divina, como um vaso de argila sendo modelado pelo e para o uso de seu oleiro, eu,
embebido por uma profunda abertura interior jamais vista antes, pude viver um
estado em que Deus é buscado em primeiro lugar e tudo mais se ordenar em função
dessa busca, o que me proporcionou entre outras coisas, ouvir e saborear a
Palavra de maneira mais intensa, a ponto de encontrar nesta Palavra Aquele a
quem minha alma ansiava. No entanto, trilhando os caminhos desta procura, sempre
que olho para mim mesmo, em contato com a Palavra, meus olhos se enchem de lágrimas
e meu coração se entristece, mas, se escuto a Palavra e a medito, se rezo a
Palavra e a pratico, o pranto e a tristeza de me ver miserável são suavemente suprimidos
pelo Gáudio de ouvir e sentir o Verbo inefável que é Cristo, falando no mais
íntimo e profundo de mim. E por tal experiência, a qual considero
demasiadamente grande por saber que Deus em Sua grandeza se comunica com a
minha pequenez, é por onde adquiri um conhecimento copioso e salutar de mim e
de Si.
Hoje, depois de não mais
vivenciar momentos iguais aos dos primórdios da minha vocação, posso dizer que
foi este o momento, onde, seguindo aquele tão antigo quanto sábio conselho do
patriarca Bento ao dizer: “Escuta filho,
os preceitos do Mestre, e inclina o ouvido do teu coração...”. Com uma
inenarrável doçura de amor, colhi os frutos da Boa Vinha, pois, com o passar
dos anos, mais precisamente após a profissão dos votos de obediência, estabilidade
e conversão dos costumes, talvez como fuga e desprezo de parte daquela minha
realidade que outrora me deparei ao me relacionar com a Palavra, aos poucos,
caindo num relaxamento interno e externamente da disciplina monástica, numa
total dureza e surdez do coração, fui lentamente perdendo o doce sabor da
Palavra, chegando até mesmo querer vivenciar posturas contrárias à minha opção
de vida e inevitavelmente, como já era de se esperar, experimentar momentos mais
fortes e duradouros as minhas debilidades que estultamente sem compreendê-las, ora
as abraçava, ora as desprezava, restando-me agora, sozinho, tonto e angustiado
dizer com o salmista: “...clamo de dia e
de noite e para mim não há resposta” (Sl 21,3).
Assim, considerando três vezes
maior o tempo em que me sinto fechado à Voz de Deus, em relação ao tempo de
abertura, e mesmo não sabendo até quando durará este exílio espiritual, não mais
me desespero, pois, na minha experiência primeira com o Verbo, mesmo pequena se
comparado ao tempo de distanciamento em que me encontro, vi e sinto que a Palavra
divina não é uma Palavra escrita e muda, mas, é o Verbo encarnado e vivo. Por
isso, não me parece absurdo dizer que mesmo me sentindo exilado da Palavra, não
me desespero, porque pela experiência vivida tenho a certeza da presença do
Verbo em meu ser, em meu cotidiano. Mesmo que eu O sinta distante e não O
perceba, sei que distante estou eu Dele e não Ele de mim. Daí, se antes clamava
aflito: “Ó meu Deus, clamo de dia e não me
ouvis, clamo de noite para mim não há resposta”, no momento presente, com o
coração cheio de esperança, resta-me esperar o dia em que possa gritar com o
profeta: “Clamei pelo Senhor na minha
angústia, e Ele me atendeu e libertou” (Sl 117, 5).
Um monge da Ordem de Cister.
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*Este depoimento encontra-se no livro “Inclina o ouvido do Coração” – em
andamento – escrito por Mauro de Almeida.
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