As raízes primitivas da
tradição contemplativa são sem dúvida os Evangelhos e a vida de oração de
Jesus, que buscava frequentemente o silêncio e solidão para estar em comunhão
com seu Pai. Ele falava do Reino interior, dizendo-nos para ao rezar, entrarmos
em nosso quarto, fechar a porta e lá, orar ao mesmo Pai no qual nos assegura
sua união e a nossa, através d’Ele. Um dos pilares da tradição cristã é que
temos em Jesus de Nazaré em suas parábolas e histórias, na tradição do
Evangelho, uma entrevisão do que sejam as possibilidades do desenvolvimento
humano. Temos uma visão de um Deus Amor do qual somos parte inerente e também
que podemos abrir-nos a união de toda nossa vida, todo nosso ser nesse Deus, e
fazer disso uma imensa e ilimitada capacidade de dar e receber amor. Muitas
vezes, entretanto, nem sempre temos a certeza de como caminhar nessa trilha, o
"caminho estreito" do qual Jesus falava, que nos possibilite fazer
dessa transformação uma realidade.
Falando de transformação somos
lembrados de que na prática da oração contemplativa somos parte de uma tradição
antiga que remonta às comunidades primitivas nos desertos da África e no
Oriente Médio. Isto pode ajudar-nos a refletir sobre a tradição dos Padres e
Madres do Deserto, como uma das primeiras tentativas de cristãos viverem
radicalmente o Evangelho, de uma forma mais sincera e radical, de tornar-se bom
como Deus é Bom e aprender a amar verdadeiramente como Jesus ensinou.
O desenvolvimento do monaquismo
do deserto acontece no contexto histórico do Concílio de Nicéia, o final da
época dos martírios e o movimento para o deserto, particularmente no alto e
baixo Egito, por cristãos buscando fuga da sociedade corrupta, elevados
impostos e conturbação social.
Três modelos iniciais de
monaquismo floresceram a partir do III ao VI séculos em três áreas geográficas.
No baixo Egito a vida monástica eremítica é melhor representada por Antão, o
Grande, um copta, que deixou uma vida de riquezas para estar só como eremita no
deserto. Sua vida foi escrita por Athanásio, em "Vida de Antão". A
abordagem eremítica enfatiza o individualismo e a solidão, com grupos que
livremente se reuniam junto a um mestre ou pai espiritual, os
"abbas".
O segundo modelo aconteceu em
Nitria e Scetis, a oeste do delta do Nilo, onde surgem pequenos ajuntamentos
livres de monges vivendo juntos sob a direção de um "abba". Estes
grupos chamavam-se "sketes" ou "lauras". Esta é a área onde
João Cassiano reuniu seus relatos sobre a prática do deserto e posteriormente
as transformou em suas "Conferências". Esses monges eram mais
letrados, já que haviam centros acadêmicos nas vizinhanças e foi ali, que Pai
(abba) Evágrio Pôntico escreveu seus trabalhos, o "Praktikos" e os
"Capítulos sobre a Oração". É também dessas duas regiões que se
originam os "Dizeres dos Padres do Deserto – os Apophetégmas. Os monges
dessa área viviam em extrema pobreza e simplicidade, devotando-se a uma vida de
oração e trabalho manual, tais como tecer cestos, e vivendo uma vida que era
apenas a manutenção da subsistência.
A terceira forma de
monasticismo se desenvolveu no Alto Egito. Este estilo enfatizava o cenobitismo
ou a vida em comum, de oração e trabalho, mais comum no ocidente. Esta forma
foi talvez melhor representada pela comunidade de Tabennsi, dirigida por Pai
Pacômio (290-347). Outras formas de monasticismo floresceram na Síria, Ásia
Menor e Gaza, na Palestina. O objetivo de todo esse modo de vida, era
proporcionar as melhores condições para se viver radicalmente o Evangelho de
Cristo e tornar possível o tipo de mudança que Jesus propusera. Os monges desse
período teciam algumas suposições. Não diferentemente do nosso tempo atual,
eles pensavam que havia algo em nossa condição humana que necessitava de cura,
como se evidenciava na sociedade e cultura em que viviam e que produzia uma
grande carga de sofrimento. Dessa forma, para que alguém se tornasse mais
completamente acessível a Deus e à transformação do Espírito Santo, alguma
forma de solidão e separação física da influência da sociedade humana era
necessária. Outro aspecto do início do monasticismo foi a conclusão, ou melhor,
a descoberta que os monges fizeram; a de que havia algo sobre a natureza de
nossos pensamentos e nossos apegos a eles e que nos tornam suscetíveis ao
pecado e incapazes de viver o Evangelho radicalmente. Eles concluíram que
devemos buscar um silêncio interior no qual possamos ter maior liberdade em
relação aos nossos pensamentos, que nos permita encontrar a Deus mais
completamente e não ficarmos sujeitos à escravidão de nossos próprios pensamentos.
Pai Amonnas foi perguntado:
"o que é o" caminho estreito e apertado"? Ele respondeu, "o
caminho estreito e apertado é este: controlar seus pensamentos e despojar-se de
sua própria vontade, por amor a Deus. Este também é o significado da fala, "Senhor,
deixamos tudo e te seguimos". Os monges começaram a compreender que, se
eles deviam se transformar em Deus, eles deviam ser capazes, de alguma maneira,
de serem liberados da condição humana que se manifestava na fragmentada
civilização romana ao redor deles e dentro de si próprios, através da liberação
e controle de seus próprios pensamentos. Então, o controle dos pensamentos
começa a ser relacionado com a oração contínua. Controle de pensamentos,
liberação de pensamentos, tornaram-se o portal para a liberação do coração
tornando-o consciente da Presença de Deus. Quando perguntado sobre o que um
monge devia fazer depois que seu coração estivesse purificado dos pensamentos,
Pai José disse, elevando seus braços para o céu e seus dedos tornando-se como dez
lâmpadas de fogo: "por que não se transformar completamente em fogo?".
A grande compreensão obtida
pelos antigos Padres e Madres do Deserto foi que a "pura intenção"
conduz à "pureza do coração" – (Thomas Keating, OCSO).
Um mestre de enorme sabedoria e
capacidade de articulação do caminho contemplativo foi Evágrio Pôntico. Ele
estabelece três elementos da vida espiritual contemplativa em seu trabalho
"Pratikos" e "Capítulos sobre a Oração". O primeiro é
"pratike", ou como se desprender de pensamentos inúteis. O segundo é
a contemplação do Criador em sua Criação, o aspecto encarnacional da prática
contemplativa. E o terceiro, a contemplação sem imagens de Deus mesmo, ou
oração pura. Esta é a dimensão "apofática" primária dessa prática.
Seguindo o conselho de Jesus de
que o pecado ou o mal começa com nossos pensamentos, Evágrio categoriza oito
tipo de pensamentos: aqueles sobre desejo, gula, concupiscência, avareza, e
aqueles de aversão ou irascibilidade, tristeza, raiva, vanglória e orgulho. O
oitavo é a acedia ou apatia, que é considerado o mais sério dos pensamentos
porque envolve a tentação de desistir da jornada espiritual. Existe o
reconhecimento por parte de Evágrio, de que os obstáculos à completa
consciência de Deus, de estar em paz com Deus, começam com pensamentos que nos
tiram de nosso próprio centro e de nosso descanso completo n’Ele. Aprendendo a
controlar os pensamentos, não dando atenção ou intenção aos mesmos, eles perdem
seu poder sobre nós. Com o tempo começamos a alcançar aqueles degraus do estado
de "apatheia" (não, "apatia" – mas algo como a
"indiferença" diante das paixões – nota da tradutora) que é o estado
de calma e paz, encontrada na libertação das paixões e da inquietude. Aqueles
que rezam atingem essa liberdade, deixando que os pensamentos surjam e
desapareçam sem lhes dar o poder da volição, isto é, do desejo.
Esta é uma premissa chave para
a compreensão do caminho da paz e da liberdade. Para Evágrio é o limiar, e
apenas o limiar para o completo exercício da Fé, que é dar o nosso radical
consentimento à Presença e Ação de Deus. Mas isto também é uma grande
compreensão psicológica e espiritual da liberdade, tanto do pecado como de
estados emocionais perigosos. Ambos se iniciam com o pensamento. Quanto mais
conscientes possamos estar dos pensamentos, mais escolhas poderemos fazer em
relação aos mesmos e àqueles aos quais damos volição e as consequências
advindas. Discernimos se os pensamentos nos conduzem à paz e a Deus ou para
longe de ambos, e se trazem maior desarmonia em relação à Presença de Deus
dentro de nós. Também atingimos o estado do "puro ser" que é abaixo,
acima e além da vontade.
A "pratike" então,
nos conduz à "apatheia" – indiferença, que por sua vez nos conduz a
um maior desejo do amor de Deus, que ainda nos conduz à intencionalidade e ao
radical consentimento de nos entregarmos, de nos abandonarmos, nossas vidas,
nossa vontade ao Deus que nos habita.
O segundo elemento da prática é
buscar, através de imagens e do mundo natural, o significado interior da
criação. Este é o modo Catafático, e o caminho da reflexão, em buscar de modo
encarnacional e intelectual, um estado de maior devoção e compromisso com o
caminho espiritual, mantendo a mente fixa em Deus. De modo que o negativo, os
pensamentos envolventes, escravizantes, são substituídos por pensamentos de
busca de Deus.
O terceiro elemento da prática
é a contemplação de Deus, ou Oração Pura. Este é o modo Apofático ou oração sem
imagens, que os dois caminhos anteriores preparam. Ele é na verdade o abandono
de todos os pensamentos que nos prepara para, como vasos que irão receber o dom
da contemplação, a consciência direta da Divina Presença. "Feliz é aquele
que atinge a perfeita não-forma na hora de sua oração…. feliz é aquele que
atinge a completa inconsciência de toda experiência sensível na hora da
oração", disse Evágrio Pôntico.
Santo Isaías, o Solitário, um
monge do deserto da Palestina, asseverava a prática da lembrança de Deus como
um despertar ou descobrir da Divina Presença que habita dentro do coração e que
os pensamentos são um obstáculo a esta completa realização. Interessante que
ele usa para oração, o termo, "lembrança de Deus", usada pelos Sufis
na prática Dikhr, de cantos repetitivos. Contudo, ele não formula uma
metodologia para manter esse foco.
João Cassiano em seus relatos
do monasticismo egípcio, na "Décima Conferência" detalha o uso de uma
fórmula de oração como um artifício para focalizar a concentração na oração.
Fala de como os monges incorporaram uma palavra ou frase da Escritura como Palavra
Sagrada. Dizer uma "Palavra de Salvação" em oração, ou conceder uma
"Palavra de Salvação" ao ensinar e abençoar, eram práticas comuns, na
época. Ele recomenda uma frase do salmo, "Vinde, ó Deus em meu auxílio,
Senhor, apressai-vos em socorrer-me". Ele vê isso como uma fórmula de
oração contínua, para ser usada e incorporada em nossa consciência, de modo que
se possa "rezar sem cessar". Ele não descreve ou dá instruções sobre
como tratar os pensamentos, mas focaliza a intenção à qual o devoto retorna incessantemente,
dirigindo todos os seus pensamentos e desejos a Deus. O bem que daí se origina
permite ao devoto mudar de pensamentos e prazeres que o distraem, para Deus
apenas. "Então, se cumprirá em nós o que o Senhor pediu quando orava a Seu
pai, ao dizer: "Que o Amor que tens por mim esteja neles e eles em nós".
A oração de Cassiano permanece
como primeira invocação na Liturgia das Horas, até hoje. A prática de rezar com
uma palavra ou frase da Escritura foi trazida para o Monaquismo Ocidental através
da prática da Lectio Divina. Mais tarde ela seria articulada de um modo mais
formal.
Acompanhando Cassiano,
ocorreram outros desenvolvimentos no pensamento sobre oração na tradição do
deserto. Talvez o mais importante desse período, que continua na tradição
Ortodoxa Oriental até os nossos dias, foi o desenvolvimento da Oração de Jesus
como uma forma potente e onipresente da "lembrança de Deus".
Acredita-se no poder do santo nome de Jesus, que por si só contenha um poder
purificador e um efeito salvífico, além da ajuda psicológica em abandonar-se os
pensamentos perturbadores. A tradição oriental da oração do deserto é talvez
melhor expressa por João Clímaco, um monge que viveu próximo ao Sinai por volta
do ano 600. Ele advocava a oração de uma frase, chamada de
"monologistos". Ele acrescentou a dimensão de se harmonizar à oração
com a respiração. Em sua "Escada para a Ascensão Divina", ele dá a
dimensão maior da prática contemplativa oriental ortodoxa. A prática é a
seguinte, e um degrau conduz ao próximo: 1 – Quietude de pensamentos
(apotheseis), e 2 – a lembrança de Jesus unida à respiração, conduzindo à
apreciação da quietude (hesychia). A fase inicial é desligar-se de distrações
na prática do monologistos, a fase do meio é a concentração no que está sendo dito,
e a conclusão é o arrebatamento no Senhor. O resultado dessa prática é a
conversão de todo desejo, num único, Deus. "Conheço hesycastas cujo ímpeto
incendiado para Deus é ilimitado. Eles geram fogo por fogo, amor por amor,
desejo por desejo". – João Clímaco.
O uso da "Oração de
Jesus" ou "Oração do Coração", passa por um desenvolvimento
maior nos nossos dias, na tradição oriental. E Philotheus do Sinai, em seus
"Escritos sobre a Filocalia na Oração do Coração" também amplia a psicologia
dos pensamentos, pecado e vícios. Ele descreve a habilidade da mente em
resistir ao abandono dos pensamentos e, por conseguinte, obter maior liberdade.
Ele também fala do processo de enredar-se em armadilhas dos pensamentos, como:
1. (impacto) – o primeiro estágio quando o pensamento ou imagem surge na mente,
2. (combinação identificação) – quando a mente se ocupa com algum desejo ou
interesse do pensamento ou imagem, apego, ao invés de desapego, 3. (mesclando-se
com) – o envolvimento ativo do desejo com o pensamento ou imagem escolhida, 4. (captura)
– a imagem ou pensamento se torna escolha ativa em direção à ação ou
dependência, ou completo envolvimento no pensamento ou imagem, em desacordo com
a busca de Deus. Esta compreensão é consistente com as teorias
cognitiva/afetiva e cognitiva/comportamental atuais.
Em resumo, desde os tempos dos
Padres e Madres do deserto os monges têm procurado aprofundar sua busca e
experiência de Deus. Nessas buscas e descobertas, temos o essencial daquilo que
sabemos ser uma prática bem formulada da Oração do Coração. Estas incluem,
primeiramente, a teologia da Presença que nos habita, e a assertiva que a
promessa dos Evangelhos de Jesus se realiza em nosso despertar para por, bem
como nossa entrega total e refúgio na Vida de Deus, no Centro de nós mesmos. O
outro ensinamento essencial é que há um método simples, uma maneira de
consentir e vencer os obstáculos de nossos próprios pensamentos, parte inerente
da nossa condição humana, na mais profunda paz, alegria e completa
transformação em Deus, rezando em silêncio e quietude, no centro mesmo de nosso
ser, o Coração. E podemos facilitar esse processo simplesmente nos
estabelecendo numa "Palavra Sagrada" que é o nosso símbolo de entrega
radical e refúgio na Presença do Deus que nos habita. Com o tempo, nossa
Intenção de Amar, o grande mandamento de Jesus, é a prática purificada e o
compromisso fortalecido que contagia toda nossa prática de oração, toda nossa
vida, levando ao completo abandono em Deus. E ao final, os frutos dessa
transformação em Deus nos conduzem a uma crescente capacidade de amar a Deus, a
nós mesmos, aos outros, ao mundo em que vivemos e a servir no mundo pela paz e
justiça.
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Autor: William T. Ryan
Tradução: Jandira Pimentel
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