No século IV d.C., os desertos
do Egito, Palestina, Arábia e Pérsia foram habitados por uma raça de homens que
deixou como rastro uma estranha reputação. Foram os primeiros eremitas
cristãos, indivíduos que abandonaram as cidades do mundo pagão para viver sozinhos.
Por que fizeram isso? As razões são muitas e variadas, mas podem ser
sintetizadas em apenas uma: a busca pela "salvação". E o que era
salvação? Com certeza, nada que pudesse ser encontrado na mera conformidade
exterior aos costumes e regras de um grupo social. Naquele tempo, os homens
haviam adquirido uma consciência aguda da qualidade estritamente individual da
"salvação". A sociedade - que significava a sociedade pagã, limitada
pelos horizontes e perspectivas da vida "neste mundo" - era considerada
por eles um naufrágio do qual cada indivíduo por si só deveria nadar para
salvar a própria vida. Não precisamos nos deter aqui e discutir a justiça dessa
visão, o que importa é considerá-la como um fato. Esses homens acreditavam que
deixar alguém à deriva, sujeitando-se passivamente aos dogmas e valores do que
conheciam como sociedade, era um desastre puro e simples. O fato de que o
imperador era agora cristão e que o "mundo" começava a enxergar a
cruz como símbolo de poder temporal apenas reforçava a resolução deles.
Essa resolução pode nos parecer
muito mais estranha do que é, uma fuga paradoxal do mundo no momento em que
este havia atingido o ápice em termos de dimensão (quase escrevi frenesi) e se
tornado oficialmente cristão. Esses homens devem ter pensado, como alguns raros
pensadores modernos (Berdiaeff é um deles), que não faz sentido a existência de
algo como um "estado cristão". Eles parecem ter duvidado de que
cristianismo e política pudessem se misturar a ponto de constituírem uma
sociedade cristã plena. Em outras palavras, para eles, a única sociedade cristã
era espiritual e extramundana: o Corpo Místico de Cristo. Trata-se com certeza
de visões extremas e é quase um escândalo lembrar delas em um tempo como o
nosso, em que a cristandade é acusada por todos os lados de pregar o
negativismo e o retraimento - de não ter meios efetivos para lidar com os
problemas da sua época. Mas não sejamos muito superficiais. Os Padres do
Deserto lidaram com os "problemas de sua época", na medida em que
pertenciam à vanguarda de seu tempo, e abriram o caminho para o desenvolvimento
de um novo homem e uma nova sociedade. Representam o que os filósofos sociais
modernos (Jaspers, Mumford) chamam de o surgimento do "homem axial",
precursor do homem personalista moderno. Os séculos XVIII e XIX, com seu
individualismo pragmático, degradaram e corromperam a herança psicológica do
homem axial devida aos Padres do Deserto e a outros religiosos contemplativos e
prepararam o caminho para a grande regressão à mentalidade de rebanho que prevalece
hoje em dia.
A fuga desses homens para o
deserto não teve um caráter puramente negativo ou individualista. Eles não se
rebelaram contra a sociedade. É verdade que eram em certa medida
"anarquistas", e não seria errado considerá-los sob essa perspectiva.
Tratava-se de homens que não acreditavam em ser controlados e comandados
passivamente por um estado decadente, e que acreditavam na existência de uma
vida não atrelada à aceitação submissa dos valores aceitos e convencionais.
Contudo, não pretendiam se colocar acima da sociedade. Não a rejeitavam com
orgulho e desdém, como se fossem superiores aos outros homens. Pelo contrário,
uma das razões pelas quais fugiram do "mundo" foi que os homens
estavam divididos entre aqueles que atingiam o sucesso e impunham seus desejos
aos outros e aqueles que tinham de ceder e aceitar a imposição. Os Padres do
Deserto recusavam-se a ser comandados, mas não tinham nenhum desejo de
comandar. Tampouco fugiram da sociedade humana - o fato de fornecerem
"conselhos" uns aos outros evidenciava uma característica
eminentemente social. Buscavam uma sociedade em que todos os homens fossem
realmente iguais e a única autoridade abaixo de Deus fosse a autoridade
carismática da sabedoria, da experiência e do amor. Claro que aceitavam a
autoridade benevolente e hierárquica dos bispos, que, todavia, estavam muito
distantes e opinavam pouco sobre o que acontecia no deserto, até a grande
controvérsia origenista no final do século IV.
O que os Padres queriam acima
de tudo era encontrar a si mesmos em Cristo. E para isso, tinham de rejeitar
completamente o "falso eu", formal, fabricado sob a coerção social no
"mundo". Buscavam um caminho que levasse a Deus e que não estivesse
traçado, que pudesse ser escolhido livremente, que não fosse predeterminado por
outros de antemão. Buscavam um Deus que pudessem encontrar por si mesmos, e não
um Deus "recebido" em um formato fixo e estereotipado. Não que
rejeitassem as fórmulas dogmáticas da fé cristã: eles as aceitavam e as
adotavam em sua feição mais simples e elementar. Porém, demoraram (pelo menos
no início, no tempo da sabedoria primitiva) a se envolver em controvérsias
teológicas. A fuga aos horizontes áridos do deserto significava também uma
recusa ao contentamento com a verborragia técnica, de argumentos e conceitos.
Estamos falando exclusivamente
de eremitas. Também havia cenobitas no deserto, centenas, milhares deles,
vivendo o "cotidiano" em mosteiros enormes, como o fundado por São
Pacômio em Tabena. Essas comunidades tinham uma ordem social, uma disciplina
quase militar. Contudo, o espírito ainda era em grande parte de personalismo e
liberdade, porque mesmo os cenobitas sabiam que suas regras eram apenas uma
estrutura externa, como uma armação de andaimes que os ajudaria a construir as
próprias vidas com Deus. Os eremitas, por sua vez, eram sob todos os aspectos
mais livres. Não tinham nada a que se "conformar" exceto à vontade
secreta, oculta e inescrutável de Deus, que devia diferir notavelmente entre
uma cela e outra! É bastante significativo que o primeiro desses Verba (número
3) é aquele em que a autoridade de Santo Antão é citada de acordo com o
princípio básico da vida no deserto, qual seja, que Deus é a autoridade e que
além de Sua vontade manifesta há poucos princípios, ou nenhum: "Portanto,
ao perceber em sua alma qualquer desejo em acordo com Deus, realize-o e assim
manterá seu coração a salvo."
Claro que tal caminho só
poderia ser percorrido por alguém muito atento e sensível aos sinais de um
lugar ermo, sem trilhas. O eremita tinha de ser maduro em sua fé, humilde,
desapegado de si mesmo de forma atroz em todos os sentidos. Os cataclismos
espirituais que às vezes arrebatavam alguns dos visionários soberbos demonstram
as ameaças da vida solitária - como ossos embranquecendo na areia. O Padre do
Deserto não podia ser um iluminista. Não podia se arriscar ao apego ao ego, ou
aos perigos do êxtase da vontade própria. Não podia reter a mais leve
identificação com seu eu superficial, transitório e autoconstruído. Deveria se
deixar levar pela realidade interna e oculta de um eu transcendente,
misterioso, não totalmente conhecido e entregue a Cristo. O Padre do Deserto
deveria morrer para os valores da existência transitória como o fez Cristo na
cruz, e levantar-se dos mortos com Ele, sob a luz de uma sabedoria
completamente nova. Portanto, uma vida de sacrifícios, que tinha início após
uma ruptura explícita que separava o monge do mundo. Uma vida em permanente
"compunção", que o ensinava a lamentar a loucura do apego a valores
irreais. Uma vida de solidão e trabalho, pobreza e jejum, caridade e oração,
que removesse o antigo ego superficial e permitisse o surgimento gradual do eu
verdadeiro e secreto, no qual o crente e Cristo fossem "um único
Espírito".
Por fim, o termo próximo de
toda essa luta era "a pureza do coração" - a visão nítida e
desobstruída do verdadeiro estado das coisas, a compreensão intuitiva da
própria realidade interna como ancorada, ou entregue, a Deus por intermédio de
Cristo. O fruto desse processo era quies: "descanso". Não o descanso
do corpo, nem mesmo a estabilização do espírito exaltado em um ponto ou ápice
de luz. Os Padres do Deserto não eram, em sua maioria, extáticos. Os que eram
deixaram atrás de si algumas histórias enganosas e esquisitas que confundem a
questão essencial. O "descanso" que esses homens buscavam era
simplesmente a sanidade e o equilíbrio de um ser que não necessitava mais olhar
para si mesmo pois era levado pela perfeição da liberdade que possuía. Aonde? A
qualquer lugar que o Amor ou o Divino Espírito considerasse apropriado. O
descanso era, portanto, uma espécie de lugar-nenhum e não-intencionalidade que
perderam toda a preocupação com o "eu" falso e limitado. Em paz, na
posse de um "nada" sublime, o espírito mantinha-se, em segredo, acima
do "tudo" - sem se preocupar em saber o que possuía.
Agora, os Padres não estavam
nem mesmo preocupados o bastante com a natureza do descanso para falarem dele
nesses termos, exceto muito raramente, como Santo Antão, quando observou que
"a oração do monge não é perfeita até que não perceba mais em si mesmo o
fato de estar orando". E isso foi dito casualmente, de passagem. De resto,
mantinham-se afastados de tudo que fosse altivo, esotérico, teórico ou de
difícil compreensão, ou seja, recusavam-se a falar sobre essas coisas. Na
verdade, não se dispunham muito a falar sobre nada, nem mesmo sobre as verdades
da fé cristã, o que explica a característica lacônica dos ditos.
Portanto, em muitos aspectos,
os Padres do Deserto tinham muito em comum com os iogues indianos e com os
monges zen-budistas da China e do Japão. Se fosse necessário achá-los nos
Estados Unidos do século XX, teríamos de procurar em lugares insólitos e
remotos. Infelizmente, são seres raros. Com certeza não vicejam nas calçadas da
esquina da rua 42 com a Broadway. Talvez fosse possível encontrar homens dessa
espécie entre os índios Pueblo ou Navajo, mas esses casos seriam inteiramente
diferentes. Haveria a simplicidade e a sabedoria primitivas, mas arraigadas em
uma sociedade primitiva. No caso dos Padres do Deserto, a ruptura explícita com
o contexto social aceito e convencional ocorria para fugir e mergulhar em um
vazio aparentemente irracional.
Embora seja possível argumentar
que homens como os Padres do Deserto possam ser encontrados em alguns de nossos
mosteiros de religiosos contemplativos, eu não iria tão longe. No nosso caso,
trata-se de homens que deixam a sociedade do "mundo" para entrar em
um outro tipo de sociedade, a da família de religiosos. Trocam os conceitos,
valores e ritos de uma sociedade pelos da outra. E considerando que hoje já
temos séculos de monasticismo, é necessário analisar o fato sob outra ótica. As
"normas" sociais da família monástica também tendem a ser
convencionais, e viver sob essas regras não representa um salto no vazio -
apenas uma alteração radical de padrões e costumes. As palavras e os exemplos
dos Padres do Deserto têm participado tanto da tradição monástica que o tempo
os tornou estereótipos para nós, e não somos mais capazes de discernir sua
admirável originalidade. Nós os enterramos, por assim dizer, em nossas rotinas
e dessa maneira nos isolamos com segurança de qualquer choque espiritual da
falta de convencionalidade deles. Mesmo assim, minha esperança ao selecionar e
editar suas "palavras" é ter conseguido apresentá-las sob uma nova
luz e manifestar novamente seu frescor.
Os Padres do Deserto foram
pioneiros, não tinham nada a dar seguimento a não ser o exemplo de alguns dos
profetas, como São João Batista, Elias, Eliseu e os Apóstolos, que também
serviram de modelos. De resto, adotavam uma vida "angélica" e seguiam
os caminhos inexplorados dos espíritos invisíveis. Suas celas eram como a
fornalha de Babilônia, na qual, em meio às chamas, encontravam-se com Cristo.
Eles não almejavam a aprovação
de seus contemporâneos, tampouco buscavam provocar qualquer reprovação porque
as opiniões dos outros passaram a não ter mais importância. Não tinham nenhuma
doutrina de liberdade estabelecida, mas de fato tornaram-se livres pagando o
preço da liberdade.
De qualquer maneira, depuravam
para si uma sabedoria muito prática e despretensiosa, ao mesmo tempo atemporal
e primitiva, e que nos permite reabrir as fontes que foram poluídas ou
bloqueadas pela recusa mental e espiritual acumulada da nossa barbárie
tecnológica. Nossa época necessita desesperadamente desse tipo de simplicidade,
necessita recuperar algo da experiência refletida nessas linhas. O termo a ser
enfatizado é experiência. As poucas frases curtas reunidas neste livro têm
pouco ou nenhum valor como informação apenas. Seria inútil folhear estas
páginas casualmente e observar que os Padres disseram isto ou aquilo. Qual a
vantagem em saber simplesmente que essas coisas foram ditas algum dia? O
importante é que foram vividas. Que emanam de uma experiência nos níveis mais
profundos da vida. Que representam uma descoberta do homem, ao final de uma
jornada interna e espiritual muito mais essencial e infinitamente mais
importante que a jornada até a lua.
O que ganhamos por viajar até a
lua se não formos capazes de cruzar o abismo que nos separa de nós mesmos? Esta
é a mais importante das viagens de descoberta, e sua falta torna todo o resto
não apenas inútil, mas também desastroso. Uma prova: os grandes viajantes e
colonizadores da Renascença foram, em sua grande maioria, homens que talvez
fossem capazes de fazer o que fizeram justamente porque estavam alienados de si
mesmos. Ao subjugar mundos primitivos, eles apenas impuseram, com a força de
canhões, sua própria confusão e alienação. Exceções magníficas, como frei Bartolomeu
de las Casas, São Francisco Xavier ou padre Mateus Ricci, apenas comprovam a
regra.
Os ditos dos Padres do Deserto
são recolhidos de uma coleção clássica, os Verba Seniorum, da Patrologia latina
de Migne (volume 73). Os Verba distinguem-se de outras obras escritas dos
Padres do Deserto pela plena falta de artifícios literários, por sua
simplicidade total e honesta. As Vidas dos Padres são muito mais
grandiloqüentes, dramáticas, estilizadas. Abundam em eventos maravilhosos e
milagres. São fortemente marcadas pelas personalidades literárias que as
protagonizaram. Os Verba, por outro lado, são relatos elementares e
despretensiosos disseminados boca a boca na tradição cóptica, antes de serem
estabelecidos pelo registro escrito em siríaco, grego e latim.
Sempre claros e concretos,
sempre remetendo à experiência do homem formado pela solidão, estes provérbios
e contos almejavam ser respostas simples a questões simples. Aqueles que iam ao
deserto em busca da "salvação" pediam aos anciãos uma "palavra"
que os ajudasse a encontrá-la - um verbum salutis, "palavra de
salvação". As respostas não pretendiam ser prescrições gerais e
universais. Ao contrário, eram chaves originalmente concretas e exatas para
portas específicas que deveriam ser cruzadas, em determinados momentos e por
determinados indivíduos. Apenas posteriormente, após muita repetição e muita
citação, as respostas começaram a ser consideradas moeda comum. Para entender
melhor estes ditos, precisamos levar em conta sua característica prática e,
poder-se-ia dizer, existencial. Mas na época em que São Bento em sua Regra
prescreveu a leitura freqüente e em voz alta das "Palavras dos
Padres" antes das Completas, os ditos já haviam se tornado uma doutrina
monástica tradicional.
Os Padres eram homens humildes
e calados, e não tinham muito a dizer. Respondiam às perguntas com poucas
palavras, iam direto ao ponto. Ao invés de fornecerem um princípio abstrato,
preferiam contar uma história concreta. Essa brevidade, plena de conteúdo,
alivia. Há mais luz e satisfação nestes ditos lacônicos do que em muitos
tratados ascéticos extensos, fartos de detalhes de como ascender de um grau a
outro da vida espiritual. As palavras dos Padres nunca são teóricas na acepção
moderna do termo. Nunca são abstratas. Tratam de coisas concretas e dos
trabalhos rotineiros da vida de um monge do século IV, mas o que transmitem
serve da mesma maneira a um pensador do século XX. As realidades essenciais da
vida interior estão presentes nelas: fé, humildade, caridade, submissão,
discrição, abnegação. No entanto, expressar o senso comum não é a menor
qualidade das "palavras de salvação".
Isto é importante. Os Padres do
Deserto adquiriram posteriormente a fama de fanáticos em decorrência das
histórias sobre seus feitos ascéticos, contadas por admiradores indiscretos. De
fato, eles eram ascéticos, mas, quando lemos suas próprias palavras e vemos o
que pensavam sobre a vida, descobrimos que em hipótese alguma eram fanáticos.
Eram pessoas humildes, caladas, sensíveis, donas de um profundo conhecimento da
natureza humana e suficiente compreensão das coisas de Deus para perceber que
sabiam muito pouco a Seu respeito. Portanto, não se dispunham a proferir longos
discursos sobre a essência divina, ou mesmo falar sobre o significado místico
das Escrituras. Se esses homens falavam pouco sobre Deus, é porque sabiam que,
quando alguém chegava a algum ponto próximo à Sua morada, o silêncio era muito
mais significativo que um monte de palavras. O fato de o Egito, naquela época,
fervilhar com controvérsias religiosas e intelectuais era uma razão a mais para
que mantivessem suas bocas fechadas. Havia os neoplatônicos, os gnósticos, os
estóicos e os pitagóricos. Havia diversos grupos vocais de cristãos ortodoxos e
heréticos. Havia os arianos, a quem os monges do deserto resistiam
veementemente. Havia os origenistas, e alguns dos monges eram seguidores fiéis
e devotados a Orígenes. Em meio a todo esse barulho, o deserto não tinha outra
contribuição a dar a não ser um silêncio discreto e desapegado.
Os grandes centros monásticos
do século IV eram o Egito, a Arábia e a Palestina. A maioria destas histórias
referem-se aos eremitas da Nítria e de Cétia, ao norte do Egito, próximas à
costa do Mediterrâneo e a oeste do Nilo. Também havia muitas colônias de monges
no delta do Nilo. Tebaida, próxima à antiga Tebas, mais em direção ao interior
do Nilo, era um outro centro de atividade monástica, especialmente dos
cenobitas. A Palestina desde cedo atraiu monges de todas as partes do mundo
cristão, sendo São Jerônimo o mais famoso deles, que viveu e traduziu as
Escrituras em uma caverna de Belém. Em seguida, havia uma importante colônia
monástica ao redor do monte Sinai, na Arábia: os fundadores do monastério de
Santa Catarina divulgaram recentemente a "descoberta" de obras de
arte bizantinas preservadas lá.
Que tipo de vida levavam os
Padres? Uma explicação pode nos ajudar a compreender melhor seus ditos. Os
Padres do Deserto são normalmente chamados de "abades" (abbas) ou
"anciãos" (senex). Um abade não era, como hoje, um superior eleito
canonicamente pela comunidade, mas qualquer monge ou eremita que tivesse
passado anos no deserto e provado ser um servo de Deus. Com eles, ou próximo a
eles, viviam "irmãos" ou "noviços" - aqueles que ainda
estavam no processo de aprendizado da vida. Os noviços ainda precisavam da
supervisão contínua de um ancião, e viviam junto a um deles para serem
instruídos por sua palavra e exemplo. Os irmãos viviam por conta própria, mas
às vezes recorriam ao conselho de um ancião das redondezas.
A maioria dos personagens
representados nos ditos e histórias são homens "a caminho" da pureza
do coração, não homens que já a atingiram plenamente. Os Padres do Deserto,
inspirados por Clemente e Orígenes, e pela tradição neoplatônica, às vezes se mostravam
confiantes de que poderiam elevar-se acima de todas as paixões e tornar-se
impermeáveis à raiva, à lascívia, ao orgulho e a todo o resto. Porém, podemos
encontrar muito pouco nestes ditos que motivasse aqueles que acreditavam na
perfeição cristã como apátheia (impassibilidade). O louvor aos monges
"além de toda paixão" parece na verdade ser proveniente de turistas
que passaram brevemente pelo deserto e voltaram às suas casas para escrever
livros sobre o que haviam visto, e não daqueles que passaram toda a vida em uma
região inóspita. Estes últimos estavam muito mais inclinados a aceitar as
realidades comuns da vida e a se satisfazer com a porção ordinária do homem que
tinha de lutar toda a vida para se superar. A sabedoria dos Verba pode ser
vista na história do monge João, que se gabava de estar "além de qualquer
tentação", e foi aconselhado por um ancião perspicaz a orar a Deus pedindo
algumas poucas e boas batalhas concretas para que sua vida continuasse a valer
alguma coisa.
Em certos momentos, todos os solitários
e noviços reuniam-se para a synaxis litúrgica (missa e orações em comum) e,
depois disso, podiam comer juntos e realizar uma espécie de assembléia para a
discussão de problemas da comunidade. Em seguida, retornavam à solidão e
passavam o tempo trabalhando e orando.
Sustentavam-se com o trabalho
das próprias mãos, normalmente tecendo cestos e esteiras com folhas de
palmeiras e juncos. Vendiam esses artigos nas cidades vizinhas. Às vezes há
dúvidas nos Verba quanto a questões relacionadas ao trabalho e o comércio
envolvido. Caridade e hospitalidade eram questões de prioridade máxima e
precediam as rotinas ascéticas pessoais e o jejum. Os inúmeros ditos que
apresentam evidências dessa benevolência afetuosa deveriam ser suficientes para
responder a acusações de que os Padres odiavam a própria raça. Na verdade,
havia mais amor, compreensão e cordialidade verdadeiros no deserto do que nas
cidades, onde, como hoje, era cada um por si.
Este fato é ainda mais
importante porque a essência propriamente dita do cristianismo é a caridade, a
unidade em Cristo. Os místicos cristãos de todas as épocas buscaram e
encontraram não apenas a unificação do próprio ser ou a união com Deus, mas a
união entre si mesmos no Espírito de Deus. Buscar uma união com Deus que implicasse
uma separação completa, em espírito e corpo, do resto da humanidade seria, para
um santo cristão, não apenas absurdo, mas também o oposto da santidade. O
isolamento no eu, a inabilidade de sair de si para ir ao outro, significaria a
incapacidade para qualquer forma de auto-transcendência. Portanto, ser
prisioneiro de si mesmo é, na verdade, estar no inferno: uma verdade que
Sartre, embora confessando-se ateu, expressou de maneira muito interessante na
peça Entre quatro paredes (Huis Clos).
Em todos os Verba Seniorum
encontramos uma insistência reiterada na primazia do amor sobre qualquer outro
aspecto da vida espiritual: sobre o conhecimento, a gnose, o ascetismo, a
contemplação, a solidão, a oração. Na verdade, o amor é a vida espiritual, sem
o qual todos os outros exercícios do espírito, embora elevados, ficam
esvaziados de conteúdo e tornam-se meras ilusões. E quanto maior a elevação,
mais perigosa a ilusão. O amor, com certeza, significa muito mais do que um
simples sentimento, muito mais que favores ínfimos ou doadores de esmolas
rotineiros. Amor significa uma identificação interior e espiritual com o irmão
para que ele não se torne um "objeto" ao "qual" se
"faz um bem". O fato é que o bem feito ao outro na forma de objeto
tem pouco ou nenhum valor espiritual. O amor faz com que o indivíduo considere
o vizinho como seu outro eu e o ame com humildade, discrição, reserva e
reverência imensas e plenas, sem as quais ninguém pode se aventurar a ingressar
no santuário da subjetividade do outro. Desse amor, toda brutalidade
autoritária, toda a exploração, dominação e superioridade arrogante devem,
necessariamente, estar ausentes. Os santos do deserto eram inimigos de todo e
qualquer expediente, sutil ou flagrante, que o "homem espiritual"
utilizasse para intimidar aqueles que considerasse inferiores, gratificando
assim o próprio ego. Eles renunciaram a tudo que evocasse punição e vingança,
por mais recôndito que fosse.
A caridade dos Padres do
Deserto não se apresenta a nós como efusões pouco convincentes. A plena
dificuldade e magnitude da tarefa de amar o outro é reconhecida em toda parte e
nunca minimizada. É difícil amar de verdade o outro se o amor for compreendido
em seu sentido pleno. O amor demanda uma transformação interna completa, pois,
sem isso, não podemos nem mesmo nos identificar com nosso irmão. Temos de nos
transformar, de certa forma, na pessoa que amamos. E isso envolve uma espécie
de morte do nosso próprio ser, do nosso próprio eu. Não importa o quão
duramente tentemos, resistamos a essa morte: lutamos contra raivas,
recriminações, exigências, ultimatos. Tentamos encontrar uma desculpa
conveniente qualquer para interromper o processo e desistir da árdua tarefa.
Porém, nos Verba Seniorum, lemos sobre o abade Amonas, que passou catorze anos orando
para superar a raiva, ou melhor, para se libertar dela. Lemos também sobre o
abade Serapião, que vendeu seu último livro, uma cópia do Evangelho, e deu o
dinheiro recebido aos pobres, ou seja, "vendeu o próprio livro que lhe
dizia para vender tudo que tinha e dar o dinheiro aos pobres". Outro abade
censurou severamente alguns monges que foram responsáveis pela prisão de um
grupo de ladrões e, depois disso, os eremitas, envergonhados, entraram na
cadeia à noite e libertaram os prisioneiros. Em outras ocasiões vemos abades
negando-se a repreender um ou outro delinqüente, como o abade Moisés, o grande
e gentil negro, que entrou na assembléia carregando uma cesta cheia de areia,
deixando-a vazar pelas fendas. E disse: "Meus pecados estão vazando sem
que eu os veja, e hoje estou aqui para julgar os pecados de uma outra
pessoa!"
Se esses protestos eram feitos,
é claro que havia algo contra o que se protestar. No final do século V, Cétia e
Nítria tornaram-se cidades monásticas rudimentares, com leis e punições. Três
chicotes pendiam em uma palmeira no lado de fora da igreja de Cétia: um para
punir monges delinqüentes, outro para ladrões e um terceiro para vadios. Porém,
havia vários monges, como o abade Moisés, que não apoiavam esse tipo de regra.
Tais monges eram os santos, representavam o ideal do deserto
"anárquico" primitivo. Talvez o exemplo mais memorável de todos seja
o dos dois irmãos que viveram juntos por anos sem brigar, e que decidiram
"discutir como todos os outros homens", mas simplesmente não conseguiram.
A oração era a essência da vida
no deserto e consistia em salmodia (oração em voz alta - recitação dos salmos
ou partes das Escrituras que todos deveriam saber de cor) e contemplação.
Aquilo que hoje chamaríamos de oração contemplativa era conhecido como quies ou
"descanso". Este termo iluminador persistiu na tradição monástica
grega como hesykhia, ou "doce repouso". Quies é um estado de absorção
silenciosa auxiliada pela repetição suave de uma única frase das Escrituras - a
mais popular delas sendo a oração de publicano: "Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tende piedade de mim, pecador." A forma abreviada desta
invocação era "Senhor, tende piedade" (Kyrie eleison) - repetida em
silêncio centenas de vezes por dia até se tornar tão espontânea e instintiva
como a respiração.
Quando Arsênio é instruído a
fugir do cenóbio, ficar em silêncio e descansar (fuge, tace, quiesce), trata-se
de um chamado à "oração contemplativa". Quies é um termo mais simples
e menos pretensioso, e muito menos desorientador. Adequa-se à simplicidade dos
Padres do Deserto muito mais que "contemplação", e predispõe a menos
ocasiões para narcisismo e megalomania. Praticamente não existia perigo de
quietismo no deserto. Os monges mantinham-se ocupados e, se o quies era a
satisfação do que buscavam, o corporalis quies ("descanso do corpo")
era um dos grandes inimigos. Traduzi corporalis quies como "vida
fácil", para não passar a impressão de que muita ação fosse tolerada no
deserto. Não era. O monge deveria permanecer tranqüilo e ficar o máximo
possível em um único lugar. Alguns Padres chegavam a desaprovar aqueles que
procuravam emprego fora de suas celas, e trabalhavam para os fazendeiros do
vale do Nilo durante as temporadas de colheita.
Por fim, nestas páginas,
encontramo-nos com diversas personalidades grandiosas e simples. Embora os
Verba sejam às vezes atribuídos a apenas um senex (ancião) não identificado,
muitas vezes são imputados ao nome do santo que os proferiu. Encontramo-nos com
o abade Antão, ninguém menos que Santo Antão, o Grande. Este é o Pai de todos
os eremitas, cuja biografia, escrita por São Atanásio, estimulou em Roma
inteira vocações monásticas. Antão era realmente o Pai de todos os Padres do
Deserto. Porém, o contato com seus pensamentos originais nos faz lembrar que
ele não é o Antão de Flaubert, tampouco encontramos aqui o Pafnúcio de Anatole
France. Antão, é verdade, atingiu a apátheia após longos e espetaculares
embates com demônios. No entanto, ao final, ele conclui que nem mesmo o diabo
era o mal pleno, visto que Deus não poderia ter criado o mal, e que todas as
Suas obras eram boas. Pode ser uma surpresa saber que Santo Antão, ao contrário
de todos, achava que o demônio tinha algo de bom em si. Isso não era mero
sentimentalismo. Mostrava apenas que não havia em Santo Antão muito espaço para
paranóia. Podemos refletir de maneira produtiva que o homem massificado moderno
é aquele que se voltou com toda sua paixão para projeções fanáticas de todo o
mal de si sobre "o inimigo" (quem quer que seja). Os solitários do
deserto eram muito mais sábios.
Assim, nos Verba, encontramos
homens santos como Santo Arsênio, o austero e calado forasteiro que chegou ao
deserto da longínqua corte dos imperadores de Constantinopla, e que não deixava
ninguém olhar seu rosto. Encontramos o gentil Poimen, o impetuoso João, o anão,
que queria se tornar "um anjo". Não menos cativante é o abade Pastor,
talvez o que apareça mais vezes. Seus ditos caracterizam-se pela humildade
prática, pelo conhecimento da fragilidade humana e pelo sólido bom senso.
Pastor, como sabemos, era muito humano e conta-se que quando seu irmão de
sangue começou a agir com frieza em relação a ele, e a dar preferência a
conversas com outro eremita, sentiu tanto ciúme que teve de ir consultar um dos
anciãos para reequilibrar seus pontos de vista.
Os monges insistiam em
permanecer humanos e "comuns". Isto pode parecer um paradoxo, mas é
muito importante. Se pararmos para pensar um momento, veremos que fugir ao
deserto para ser extraordinário é somente carregar o mundo como um padrão
implícito de comparação. O resultado não seria outro que a autocontemplação e a
autocomparação com o padrão negativo do mundo recém-abandonado. Alguns dos
monges do deserto fizeram isso e o que conseguiram foi a perda do equilíbrio
mental. Os homens simples que viveram suas vidas até uma idade avançada entre
pedras e areia só o fizeram porque haviam ido ao deserto para serem eles
mesmos, para viverem seu eu ordinário, e para esquecerem um mundo que os
mantinha afastados de si mesmos. Não pode haver outra razão válida para buscar
a solidão ou para se afastar do mundo. Portanto, deixar o mundo é, na verdade,
ajudar a salvá-lo, salvando-se a si mesmo. Este é o ponto final e fundamental.
Os eremitas cópticos que deixaram o mundo, embora estivessem escapando de um
naufrágio, não pretendiam apenas salvar suas vidas. Eles sabiam que eram
incapazes de fazer algum bem aos outros enquanto se debatessem no naufrágio.
Porém, uma vez que conseguissem colocar os pés em terra firme, as coisas seriam
diferentes. Nesse momento eles não apenas teriam o poder, mas a obrigação de
trazer todo o mundo a salvo atrás deles.
Esta é a lição paradoxal deles
para os nossos tempos. Talvez fosse um pouco de exagero dizer que o mundo atual
precise de um outro movimento como aquele que atraiu tantos homens para os
desertos do Egito e da Palestina. O nosso tempo é sem dúvida de solitários e
eremitas. Porém, apenas reproduzir a simplicidade, a austeridade e as orações
daquelas almas primitivas não é a resposta mais completa, nem a mais
apropriada. Precisamos transcendê-los, e transcender todos aqueles que, desde
suas respectivas épocas, foram além dos limites que estabeleceram. Devemos
libertar a nós mesmos, da nossa própria maneira, do envolvimento com um mundo
que caminha para o desastre, com a diferença de que nosso mundo é diferente do
deles. Nosso envolvimento é mais completo. Nosso perigo é muito mais urgente.
Nosso tempo, talvez, é mais curto do que pensamos.
Não podemos fazer exatamente o
que eles fizeram. Porém, precisamos ser igualmente meticulosos e inexoráveis em
nossa determinação de quebrar os elos espirituais e repudiar a dominação de
compulsões externas para encontrarmos nosso verdadeiro eu, para descobrirmos e
desenvolvermos nossa liberdade espiritual inalienável e usá-la para construir,
na terra, o Reino de Deus. Não é este o momento de especular o que está
envolvido nessa grandiosa e misteriosa vocação. Isto ainda é desconhecido. Para
mim, basta dizer que é preciso aprender com esses homens do século IV como
ignorar o preconceito, desafiar a compulsão e penetrar sem medo no
desconhecido.
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A Sabedoria do deserto -
Editora Martins Fontes