***
As falas sobre deserto soam
para alguns como uma composição poética e espiritualista... para outros é
simplesmente um lugar, um espaço diferente de tantos outros lugares,
característico, no meio do nada, onde sobressaem a realidade que lhe é própria:
animais peçonhentos, tempestades de areia, sol escaldante e frio estabilizador.
Fábulas, mitos, revelações, miragens, bem como aparições atreladas às fantasias
das mais atraentes e por vezes enganosas são relatadas de forma as mais
diversas com o intuito de transcendência do mistério que aí se desdobra, e que compreensivelmente
enchem por certo os olhos daqueles que são atraídos por narrações de acontecimentos
espirituais elevados. O deserto é sem dúvida alguma o cenário dos grandes
acontecimentos e desfechos, marcando assim a experiência de quem se permite
atravessá-lo como algo inusitado e eterno.
A verdade é que o deserto traz
em si mesmo o fascínio que lhe é peculiar, assim também como a sua realidade de
terror momentâneo, para quem lhe escapa, e de perda para quem lhe é ferido de
morte, o que lhe é bem mais adequado. Há
de alguma forma quem se veja aí, sob estes dois polos, e se identifique com
todas as realidades mencionadas acima, ou aquelas que por ignorância me
esquivei de mencionar.
Por mais simples que seja o
mistério que o rodeia é ainda muito maior, vai muito além do que a linguagem
possa captar e externar, e só poderá ser compreendido em sua totalidade quando
o ser for de fato confrontado com a nossa individuação. Sendo assim, não seria estranho dizer ou até
mesmo afirmar que ‘o Deserto é o espaço do SER’; é lugar por excelência onde a
pessoa pode ‘SER’ de fato, sem máscaras, tal como se é, originalmente.
“No
deserto somos quem somos... Não há como camuflar o ‘SER’ em vista de nossa
vaidade e orgulho”
Por mais que queiramos ficar
estacionados pela escolha de ficar fantasiando a realidade deste espaço tão
distinto de tantos outros, a sua realidade nos remete a nossa real verdade e
isso pode nos atingir até às bases de nosso profundo mistério, e que se esconde
em Deus.
Ao pensarmos no significado do
termo ‘DESERTO’, e sua implicação,
nos advêm duas realidades distintas: em primeiro lugar a ideia de deserto como
concebemos, lugar ermo, inóspito, concreto, material, etc., e que se
caracteriza em algo palpável, físico; o segundo é o da imanência, ou seja, da
realidade que vai para além daquilo que se pode ver e tocar e que está no
âmbito da espiritualização. Se por um lado temos a imagem do deserto físico,
atrelado a este há também uma realidade para além do nosso entendimento e que
se funde nas realidades interiores do quotidiano de cada ser. Uma jamais poderá
ser compreendida sem a conotação que a outra implica e vice versa.
O deserto é o lugar da verdade,
da verdade sobre mim mesmo, em primeiro lugar, que se une a todas as verdades,
ao olhar para a humanidade inteira no orbe. No deserto nos deparamos com as
nossas falsas fantasias de nós mesmos, somos o que somos sem a pressão que a
sociedade de todos os tempos, ao longo dos séculos, fora construindo como sendo
o padrão de vida ‘aceitável’. É
justamente aí, no deserto que nos apresentamos diante de Deus como de fato
somos e não pode haver enganos de pessoa, ou seja, é aí mesmo no deserto onde O
mesmo se deixa ser amado e pode amar na verdade, pois este mesmo jamais se
deixa ser encontrado quando o engano é a vestidura de toda uma vida marcada sob
o peso de ser quem não é.
Um dado curioso nas Sagradas
Escrituras é que toda manifestação de Deus à alguém é marcada por um confronto
pessoal que pode ser entendido como um deserto particular/espiritual ou até
mesmo no deserto físico como foi o caso de Israel, andante, peregrino e em
marcha para a terra prometida. Quando o mesmo se esquecia de quem era, pelo
pecado, a crise se instalava, e só por meio da penitência (do reconhecimento da
falta) que Deus o acolhia deveras em seu amor.
Ora, o maior pecado que nos
afasta de Deus é justamente o pecado que se refere à nossa verdade, verdade esta
que se estreita com a realidade de nossa pequenez, camuflada muitas vezes pela imagem
soberba ‘do que’ e ‘de quem’ não somos e
nunca fomos.
A nós cabe o grito do cego às
portas da cidade de Jericó, que, consciente de sua verdade, seu deserto
particular, não cessou de gritar em sua dor com a voz, mas também com a pureza
de seu coração:
“...Jesus, Filho de Davi, tem piedade de mim!” Mt 18, 38
É só então quando Deus nos
reconhece, se inclina sobre nós e nos devolve a verdadeira vida. Assim seja!
By Maurus
Nenhum comentário:
Postar um comentário