“Vossa Palavra é luz que ilumina meus passos, é lâmpada em meu caminho”
Sl 118, 105.
* * *
Existe uma diferença entre Palavra
de Deus escrita – como um dado histórico passado – e Palavra de Deus revelada,
ou seja, aquela que é confrontada com a história presente, na qual a pessoa
está inserida, dando-se aí como concretização da Palavra de Deus pessoal ou
comunitária à sua compreensão.
A Palavra escrita é um dado
importante ao compararmos os feitos que Deus outrora realizou, numa época
específica, para um povo específico, sob contexto similar ou diferente de hoje,
e que nos leva a direcionar o nosso entendimento ao encarnar a mesma no
aqui e agora.
Para os antigos monges, era
imprescindível e lhes bastavam por excelência o contato assíduo com a leitura sagrada, ou ‘lectio
divina’, que, ruminada ao longo do tempo chegavam à compreensão por meio da
abertura gradativa que se dava pela experiência pessoal no decorrer do dia, ou
até mesmo dos anos, logo fossem capazes de apreender e entender a Palavra de
Deus pela acolhida em seu interior; sendo assim, a Sagradas Escrituras era confrontada e se misturava com a própria vida, surtindo o efeito esperado com o alargar do espírito e o
dilatar do coração.
Persuadido pelo exemplo e experiências anteriores de monges - que bem antes já viviam nos desertos - contatamos que em São Bento não fora diferente; o
importante foi sempre manter o contato extenso e assíduo com as divinas
Escrituras, ainda que sem muita compreensão no momento, mas certo de que feito
na perseverança ia se revelando no coração o entendimento do mistério divino que
consistia exclusivamente no confronto entre a leitura escrita com a realidade pessoal vivida como garantia do desvendar das revelações de Deus.
A compreensão de Deus e o pronto
cumprimento à sua vontade não se dão na estagnação, mas no movimento de ação
vivida; é aí onde podemos dizer que se desdobra o grande acontecimento para
onde aflui todo o sedento, a contemplação. Por meio desta, somos como que
transportados a um estado de êxtase pelo entendimento - talvez até sem explicação aparente - e que não podia ter sua razão de ser,
não fosse o próprio Deus em Sua atração a se revelar para quem O deseja verdadeiramente. A contemplação é o ápice de uma satisfação da alma movido por um gozo espiritual que não pode ser tocado, mas unicamente sentido. Humanamente falando, assemelha-se a um prazer, amor que contempla
duas pessoas que se amam; é o grau mais alto da realização que preenche o vazio interior e onde
todos almejam chegar, embora nem sempre se alcance, por conta de tantas
distrações que se misturam às nossas idéias e fantasias. Contemplar é rasgar o
véu que separa a criatura de seu Criador, é fazer a tão sonhada e almejada experiência de Deus, numa
visão que O considere para além de nossas idéias formuladas, encontrando seu verdadeiro sentido ao se deixar ser amado por Seu amor indizível, que nos acolhe como
filhos.
O maior risco
de impedimento a esta experiência é o de se entregar a criações fantasiosas que
deturpam a imagem verdadeira de Deus que está para além de nossa compreensão,
muitas vezes limitada pela nossa má inclinação. É preciso deixar moldar-se
segundo o guiar do Espírito, tornar-se como criança, ou seja, abertos e atentos
para tudo o que é novo e que se desenrola como novidade a cada instante, em
vista de um reino, cuja presença não se encontra estagnada, mas, que, a cada dia se nos apresenta renovada por meio da história humana.
Ao apreendermos a Palavra pela leitura, somos como que conduzidos a uma atitude de reverência interior levando-nos à meditação e, consequentemente, à oração.
Assim, a Palavra se torna orante em
nós e vamos estendendo-a ao longo dos dias, meses, anos e por toda a vida,
fazendo da mesma uma só com os nossos anseios, apaziguando nossos combates
internos como um antídoto que cura o mal em nós. Foi desta forma que muitos dos
antigos pais do deserto se superaram ao estabelecer um contato incessante com
as divinas escrituras, e de forma toda excepcional; encontravam aí, nas Escrituras Sagradas, remédio contra os espíritos do mal, para as suas
tendências as mais insubordinadas. Não podíamos deixar de mencionar aqui Jesus
no confronto pessoal no deserto; foi com a Palavra de Deus que ele venceu o
demônio. Faz-se necessário, portanto, estabelecer
constantemente um estreito contato com as Sagradas Escrituras, como nos diz o
Pai Isaías: “... é não deixar ao inimigo nenhuma abertura por onde ele possa
entrar no nosso coração”, ou ainda, como no dizer de outro ancião: “Quando um
homem lê as Sagradas Escrituras, os demônios enchem-se de temor”. São Lucas termina o relato das tentações nos
dando uma informação importante ao dizer: “... o demônio se afastou dele até o
momento oportuno”, para dizer que não cessava por aí os confrontos, era preciso
está sempre atento, em outras palavras, as divinas escrituras deviam sempre
permanecer no coração orante preparando o terreno para os possíveis ataques que
não findariam enquanto se está neste mundo.
É conhecido o termo em relação à
Palavra de Deus na boca do salmista; Ela é comparada a uma espada de dois gumes, ou melhor, bem mais que isso... vai além do que é inimaginável. Entende-se por esse termo, que, a Palavra divina tem o poder de esquadrinhar a
alma e o espírito, em outras palavras, toma o homem todo, ao confrontá-lo com os seus males, despertando o que existe de divino em si mesmo, ao revelar-lhe os segredos
mais secretos de seu interior. Nenhuma
criatura humana lhe escapa, indicando que A mesma está bem inserida na vida
integral de todo ser humano.
Um relato importante para a nossa
compreensão nesse sentido é o encontro de Jesus com o endemoniado na terra dos
gerasenos, assim como nos descreve São Marcos em seu evangelho. Sendo o Verbo
do Pai, Jesus confronta e separa como uma espada, por sua ordem, o que existe
de mal e destruidor no interior daquele homem possuído. Mas é pelo desejo
profundo do mesmo, confrontado com o seu mal, que ele é liberto. Assim, o
desejo, a ânsia, se entrelaça com a vontade divina que nada pode fazer sem o
nosso consentimento, mas também cientes de que sozinhos nada se pode fazer,
abrindo espaço para a intervenção de um bem necessário que esquadrinha o homem
todo.
Para os antigos pais, o caminho
percorrido no deserto se dava a partir da experiência particular sob a luz da
Palavra de Deus como uma fonte, de onde brotava todo o bem de suas almas
sedentas, confrontada dia após dia com suas más inclinações. Sob a luz de Deus,
avançavam com o desejo profundo de aí encarnarem a Palavra num confronto
contínuo com a sua verdade, onde pudesse chegar através de suas atitudes à
compreensão de não ser mais eles que vivessem por eles mesmos, mas o próprio
Cristo, como no dizer do apóstolo.
A medida de nossa adesão à Palavra,
ou inclinar do coração, será o grau da força com que ela impetrará em nós Sua
eficácia e nos livrará do mal com todo poder, visto ser ela, a Palavra de Deus,
a qual aborrece os demônios e os dissipa. O encarnar da Palavra como forma de
orientar toda ação humana se torna por assim dizer a mesma em ato e prece, uma
vez que a vigilância a que Jesus nos propõe é a mesma das boas obras e que São
Bento menciona já no prólogo de sua regra.
O vigiar a que Jesus se refere e São
Bento enfoca em sua regra está todo voltado para aquela caridade perfeita que
deve imperar na comunidade fundada sob o signo do Verbo, Palavra de Deus que se
fez carne, e que poderá ser identificada como cerne de toda a busca – por meio
da vivência como que encarnada da mesma – ao considerarmos o fruto de nossas
ações.
By Maurus
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* Do livro: Inclina o Ouvido do Coração - obediência segundo São Bento para os dias atuais.
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